VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Líbia, Japão, Golfo do México: o óbvio ululante e o surdismo sistêmico


Esta não é a primeira vez que inicio a redação desta postagem. Na verdade, já a havia começado duas vezes, sendo que da primeira ela seria um comentário sobre o acidente, desastre ou  como quer que se denomine o "pequeno" horror nuclear no Japão, esse evento cujo desenrolar na verdade ainda acompanhamos, e de caráter tão assustador - sobretudo em sua possibilidade de se tornar algo muito maior - que torna banal e cotidiano um paradoxo como este, de se enunciar diminutivamente algo a rigor muito terrível, ou ainda esse outro, de sobrepô-lo à, a rigor, não menor tragédia mais propriamente natural, ou seja, o conjunto da devastação causada pelo abalo sísmico.

Mas, enfim, logo me dei conta de que não poderia tratar de um assunto tão grave sem tratar de outros. Que havia algo de profundamente errado, mentiroso mesmo, em tratar as graves ocorrências que têm se acumulado com uma velocidade algo espantosa da forma dissociada como tem feito a mídia, como se elas não participassem de uma totalidade. Sem dúvida que favorece isso a "diversidade geográfica" desses eventos, isso, no entanto, que também exige perguntar se não é, justamente, de uma amplitude que se trata.

Desnorteado como fiquei pelo noticiário a respeito do "primeiro" - e, queira Deus, último - "Columbine" brasileiro, era inevitável que minha primeira racionalização desse atordoamento fosse ver aí mais um (pois não é, nem de longe, o único) corolário  espiritual desse estado de coisas; desse estado do mundo que não posso deixar de ver refletido nesses eventos que se sucedem, e que nos são dados a engolir misturados a um pequeno coquetel de engodos, meias verdades e, mais do que tudo, hipocrisias.

Insistir no caráter acidental do que houve no Golfo do México e ainda há no Japão é quase tão esquivo (para não dizer equívoco) quanto tomar tais eventos e as convulsões (e intervenções) belicosas na África muçulmana como coisas passadas em "outro mundo". Não há apenas acidente quando tantos interesses favorecem a configuração das estruturas, dos planejamentos, das políticas, decisões e implementações das coisas. Da implementação, no caso - ou seja, de alguma forma enfeixando os três casos em questão - de toda uma política de exploração dos seres e das coisas, de erigimento e sustentação de toda uma construção "civilizacional".

Afinal, tanto quanto a usina de Fukushima (que todos sentimos, a despeito das distâncias efetivas, como bem mais próxima de nós do que Chernobyl, cujo horror nos foi apresentado como mais um entre outros atestados da falência do estado soviético) e as explorações petrolíferas da British Petroleum, também a economia da África do Norte integra um mesmo complexo produtivo votado ao atendimento de um mesmo conjunto de demandas "civilizatórias", que não podem ser seccionadas em função da localização geográfica ou dos regimes político-econômicos que compõem suas realidades particulares.

E não só o fato de as "políticas energéticas" implementadas sob a égide (mas é apenas isto: uma égide) do desenvolvimento capitalista determinarem as condições de existência contra as quais se soergueram os rebeldes na Turquia e no Egito, como também este outro, de ser cada vez mais transparente o quanto elas estão em jogo na intervenção dita internacional na Líbia (cf. aqui uma boa análise dos interesses em jogo aí), são dados que os aparelhos de agenciamento da opinião pública insistem em manter no providencial lusco-fusco das discussões - e motivações - humanitárias e regionalistas.

Elide-se, assim, algo pelo menos tão gritante e escandaloso quanto os horrores impetrados nas guerras ditas domésticas: a teia de contradições em que se enredam essas justificativas, e com elas, é claro, as ações impetradas. E, mais, elide-se o fato de que é algo muito próximo a um desespero logístico que move tudo isso, ligado ao reconhecimento implícito de um estado de crise, da condição emergencial de um estado de enorme fragilidade sistêmica. Nisso, a afoiteza do "socorro" à Líbia e os "acidentes" nos empreendimentos industriais da British Petroleum e da Tepco se igualam: no desvelmento de quão precárias são as bases materiais mais elementares - as "matrizes energéticas" - do estado do mundo que compramos e aceitamos como nosso.

De alguma forma, também Belo Monte figura nesse quadro. Por mais que isso que por enquanto é um projeto engatilhado deva ser distinto dos dolorosos eventos em curso (mesmo o derramamento de petróleo no Golfo do México continua a produzir graves consequências, ditas - como se designando algo à parte de nós - ambientais), o conluio sistêmico, ou seja, a legitimação ancorada na mesma "lógica produtiva" (que sabemos perfeitamente destrutiva) por trás desses empreendimentos é evidente, e não há retórica ou pragmática nacional-desenvolvimentista que elida isso (ainda que as questões referentes à soberania nacional tenham aí o seu peso).

De qualquer forma, sempre foi claro que também nisso Dilma Rousseff continua o governo Lula: na adoção de uma política econômica consumista-desenvolvimentista, se não inteiramente atrelada à expansão do "capitalismo internacional" (outra expressão altamente sinuosa: onde fica aí, por exemplo, a China?), certamente ligada às mesmas bases antropossociológicas, as mesmíssimas bases das sociedades de exploração e dominação do homem e da natureza que encontram não sua gênese, mas sua glorificação na predação capitalista.

E o óbvio que se tornou gritante demais para não lhe darmos ouvidos é que são essas bases que se tornaram insustentáveis; que o pouco que elas nos prometiam em troca da vida reprimida, regulada e alienada - ou seja, "conforto", "padrão de vida" e "segurança" - se assentava nas bases de um grande engodo. Fukushima é apenas a demonstração mais gritante disso; pois mesmo às consciências mais alienadas se tornou evidente que um acontecimento como o japonês lança uma sombra muito assustadora sobre essas enormes monstruosidades chamadas usinas nucleares com que se minou o planeta. Nada assim tão novo, nada que os "ecochatos" não alardeiem há décadas com enfadonha insistência, atrapalhando nossas ruminações sobre coisas tão mais complexas quanto, no fundo, inessenciais - pelo menos quando dissociadas das coisas de fato, ou seja, elementarmente essenciais.
 
E o fato é que, por mais que se clame contra o alarmismo, os alarmes têm soado por si mesmos. Nesse sentido, Fukushima é uma das peças de um quebra-cabeças muito maior mas muito fácil de se montar, e em cujo frontispício se anuncia, em letras claras o bastante para quem não quiser deixar de ver, uma falência verdadeiramente sistêmica.

Sem dúvida, a necessidade de "optar" (como se fosse assim tão simples) entre a barbárie em curso e uma outra coisa quiçá um pouco ou um tanto melhor - "socialismo" a designa, ainda? - é mais imperiosa do que nunca; mas tão imperioso quanto isso é assumir em todas as suas consequências o que isso significa na prática. Pois é evidente que os "discursos revolucionários" se tornaram pouco mais do que um substituto para a assunção de algo muito mais árduo de se conquistar ou construir.

Nenhum horizonte novo se tornará minimamente palpável enquanto a necessidade de zelar por nossas "bases civilizacionais", com todas as "conquistas" do conforto, da medicina e, claro, da nutrição - que, não obstante, incluem as doenças emergentes e as sociopatias -, enquanto essas "necessidades", eu dizia, se impuserem com a força que todos sabemos ser muito semelhante à dos vícios mais miseráveis.

Tanto mais quando essas "necessidades" se impõem tão frequemente mesmo às ditas consciências esclarecidas. É uma atitude padrão e disseminada, ligada à reivindicação de uma espécie de foro existencial privilegiado para o trabalho intelectual, o não reconhecimento cabal de que a raiz dos problemas pelos quais "nos interessamos" (não é bem o jargão acadêmico?) está ligada ao que nos consititui não apenas como partícipes dos espaços sociais e coletivos, ou seja, ao que se chama, tão objetiva quanto vagamente, a "estrutura social" (sem que, geralmente, se precise do quê: um país, uma cidade, a existência?), mas também com o que nos constitui, de forma ao mesmo tempo muito mais ampla (ou seja, coletiva) e completamente individual, como seres humanos. Não há possibilidade de um passo firme em direção a qualquer melhora efetiva se não for por aí, e na decisão de fazer do compromisso com isso um lastro ético-decisório para todo o "resto", ou seja, tudo o que nos constitui na prática, ou seja, na existência efetiva.

E, cá entre nós, há poucas coisas mais constrangedoras para a classe dos intelectuais do que a frequente aliança, dentro dela, de "consciência" e  discursos indignados com a participação ativa na pragmática destrutivo-consumista, leia-se consumidora, do mundo. Deste mundo que, de fato, se consome nas orgias cotidianas com que celebramos nosso dito ascendente "padrão de vida" - e talvez seja a última palavra, aí, que mais mereça as aspas.

3 comentários:

  1. http://revistacidadesol.blogspot.com/2011/04/uma-analise-da-carta-do-atirador.html

    Taí a análise do argh, primeiro columbine brasileiro.

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  2. Cassiano Terra Rodrigues12 de abril de 2011 às 08:25

    ravel, eu usaria aspas pra "ascendente", e não pra "padrão de vida". Ou então, pensando agora, "padrão de morte". Obrigado por compartilhar as reflexões.

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  3. Sou eu quem agradeço, Cassiano. O blog, aliás, está aberto a suas contribuições. E foi isso mesmo que eu quis dizer: são padrões de morte, ou morte em vida, esses que engolimos e vestimos todos os dias.

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