VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A Vida Alheia: e se Adorno tivesse um celular?


Essa postagem busca apenas pontuar algumas questões para os brasileiros que estudam Adorno e a teoria crítica. Siderados pela crítica de Adorno a Stravinski e ao jazz, trocando confidências em alemão, deslumbrados com Schoenberg, eles não têm criticado as novas tecnologias representadas pelos celulares e a internet e os produtos da indústria cultural tais como as telenovelas. A recepção de Adorno tem deixado de lado contribuições de teóricos e pesquisadores tais como José Ramos Tinhorão, Gilberto Vasconcellos e Glauber Rocha. E sem isso, o estudo da indústria cultural tem sido mero jogo aristocrático de elite restrito às universidades.

O celular ou telefone móvel generaliza-se na era do capital também móvel pelo mundo e na voga da razão comunicativa. Embora favoreça a razão comunicativa, o celular provoca um retrocesso nas boas maneiras, assim como favorece o seu uso invasivo ou irracional. Por fim, com a proliferação dos celulares, o diálogo fica praticamente impossível. O diálogo é interrompido pela chamada insistente dessas pequenas sereias do inferno.

Embora a terceira geração do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, hoje em dia, escute Bob Dylan após o corte com a razão negativa realizada por Habermas, mesmo Dylan é insuportável uma vez transformado em música de fundo para um celular. E, se antigamente utilizava-se músicas para fundo no celular, cada vez mais o celular é que determina os rumos da canção popular, com as canções de massa reiterando sem cessar: “beijo, me liga”, “amor, por favor, não desligue o telefone”. Não se vende mais um telefone, mas sim a luxuriante troca de mensagens que se pode fazer através do telefone. No entanto, essa troca torna a vida dos próximos insuportável, pois se dá dentro do cinema, no teatro, no trabalho, durante uma palestra, etc. E o pior é que, nesse mundo idílico do sexo verbalizado, irrompeu há alguns anos o telelumpen: o trabalhador degradado pelo liberalismo que cai no submundo do crime e, a partir do presídio, comete crimes através do celular. E os crimes através do telelumpen são justamente a perversão da linguagem do amor telefônico: o bandido afirma que seu filho foi seqüestrado e logo em seguida ouve-se a voz de um outro deles que dramatiza, claramente influenciado pelas telenovelas: “pai, eu te amo”. Se o padrão da Globo é classe média, então a classe média está sendo vítima, através do celular, de crimes inspirados em sua própria estética de classe.

O celular opera, então, com o fetiche: compra-se um celular para possibilitar o sexo verbal. As telenovelas operam com um esquema semelhante. Elas nascem e se apropriam da teorização de esquerda do realismo crítico enquanto intervenção na realidade, tornando-o realismo reacionário. Assim, as “pegadinhas” da TV mostram atores encenando e os passantes têm suas reações à situação, que tomam como real, registradas e exibidas para criar constrangimento; ao mesmo tempo, as telenovelas recriam a realidade através de amplos painéis sociais, reduzindo qualquer conflito de classe a um conflito entre “pobres” e “ricos”.

O principal assunto da novela é o dinheiro, em torno do qual tudo gira. A solução para a desigualdade social e a luta de classes é casar com um homem ou mulher rica. Os defeitos de um homem ou de uma mulher são facilmente compensados pelo acesso à sua conta bancária, na verdade bem mais cobiçada do que sua cama. Na ética prostituta da telenovela, uma aula de violino é desculpa para um encontro sexual extraconjugal. Por trás desse tipo de situação está a disposição estrutural para colocar toda a cultura para render dinheiro, desprezando tudo aquilo que, nela, não servir para esse propósito. Quem não se puder prostituir é “múmia”, no entender desse tipo de programa televisivo. Como diz o grande jornalista Laerte Braga, que deve ser urgentemente estudado pelos teóricos da indústria cultural brasileira, o lema das telenovelas e do BBB é “o bordel em sua casa”.

A apresentação realista e naturalista, assim como todo o esforço mercadológico em torno delas convida a tomarmos a representação enquanto espelho de nossas vidas. A telenovela mobiliza as fantasias das massas, exercendo enorme impacto sobre a vida cultural do País. Aliás, a telenovela praticamente destruiu o cinema e o teatro do Brasil, arrasando, através do mercado, com todas as tradições e linguagens que não a dela. Mesmo as leis de incentivo à cultura do estado subvencionam abertamente produtos com essa estética.

Nos últimos anos, com o surgimento de novas mídias, a telenovela perdeu parte de seu impacto cultural. O seu lucro é baseado na venda não só dos produtos nos comerciais, mas na venda de produtos dentro da ficção: vende-se produtos apresentados durante as cenas quanto nos intervalos comerciais, por isso a televisão dá tanto lucro. Para isso, nessa ficção cada vez mais os objetos ganham uma presença mais viva que os atores. Uma vez num restaurante, ganha enorme destaque o nome do restaurante, suas mesas e cadeiras e a refeição. Aliás, as telenovelas operam de forma gastronômica: tanto as refeições são apresentadas de forma bem atraente de forma a produzir o desejo de comer, como os atores e atrizes ganham também uma apresentação semelhante, mas apelando para fantasias sexuais e masturbatórias. O nome de um galã como Gianechinni torna-se, mais do que um nome, um adjetivo que é sinônimo de “bonito”: “ele não é Gianechinni”. Como quem trabalha em televisão é glamourizado, nasceu ao redor das televisões toda uma indústria de revistas repugnantes que se ocupam, sem nem um escrúpulo, da vida alheia, mas em especial da vida dos famosos, roubando e invadindo, de forma altamente predatória, sua vida privada, infernizando suas vidas com uma punição que resposta ao fato de ter dinheiro e fama numa sociedade como essa. E utilizando o slogan: “a vida alheia é mais interessante do que a sua”, um verdadeiro lema da alienação. Os atores que fazem a novela e todos que aparecem na televisão passam a dispor de um enorme capital simbólico, passam a ser “celebridades”, ou seja, alguém que dispõe de capital simbólico devido à sua visibilidade.

A telenovela, ao entrar em crise, produziu um subproduto diretamente articulado ao celular: o show de realidade, Big Brother Brasil. Nele, telefona-se para eliminar participante. O reality show encena o drama de um “campo de concentração”, um drama nacional. O drama de um Auschwitz onde o cárcere possibilita a lazeira do consumismo e onde se tem de falar alto para que sua voz possa ser captada pelos microfones. O microfone manda na voz do participante e a edição da realidade com a estética da telenovela, as ligações de celular e o veneno de Bial modelam seu destino, sua vida e sua morte dentro do “campo”. Cada cidadão, despido de culpa coletiva, liga para eliminar um “judeu”, ou melhor, um participante, que então vai para a câmara de gás da realidade. Lá fora, o aguarda a sentinela kafkiana e caucasóide chamada Pedro “Bial”, cujo nome é uma variação alemã de “azul”. É o “kapo” Pedro “Blau” que destila o seu azul da Prússia verbal e traz de volta os participantes para a câmara de gás do mundo real. A grande diversão, após a novela, é reencenar um dos grandes acontecimentos de nossa era, torna-se agora um mito exaustivamente explorado pelo cinema norte-americano: Auschwitz. Aos sobreviventes do BBB e de Auschwitz sempre se faz a mesma pergunta: “o que você aprendeu?” Respeitarei muitíssimo mais o deputado federal Jean Wyllys quando ele tiver a coragem de, como uma personagem do filme O Leitor, dizer: “Não aprendi nada, os campos (e o BBB) não eram terapia. Se quiser aprender alguma coisa, não vá aos campos (e não veja o BBB)”.

Após a decadência das novelas, se seguirá a decadência do formato reality show e isso se dará rapidez maior do que se deu com o produto “telenovela”. Será necessária, no futuro, uma campanha para que a sociedade se “destelevise”, assim como os estudos de Foucault produziram a luta antimanicomial. Aliás, os foucauldianos e deleuzianos precisam dizer que a grande lição do Big Brother é que uma grande empresa de televisão é hoje também uma das instituições que buscam o controle total, até mais do que escola, o presídio e o hospício. Faltou a Foucault o insight de que a prisão onde tudo se podia ver, o panóplio holandês, deu nos campos de concentração nazistas e, na atualidade, na prisão de consumo do Big Brother Brasil.

Lúcio Jr.

9 comentários:

  1. Oi, Ravel e pessoal.

    Eu até achava que pudesse ter me excedido nesse texto, mas quando, por acaso, vi os bróders e a sisters vestidos de frango assando num forno para fazer propaganda da Knorr, em pleno verão, achei que talvez eles esteja até conscientes disso, de que Big Bróder é um Auschwitz de consumo e estivessem fazendo isso por puro escárnio. Em plena tragédia em Nova Friburgo, ouviu-se uma voz macabra no BBB mandando-os economizar víveres. A voz gargalhava de prazer e sadismo. De quem era essa voz? Era o fantasma de Hitler, penso eu.


    E vi um colunista, Alê Rocha, no Yahoo, chegando a essa mesma conclusão: Hitler ficaria orgulhoso do Big Bróder.

    Abs!

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  2. Lúcio, seu texto vai direto no ponto: a complacência, blasé ou deslumbrada dos intelectuais, é o lustre que faltava no bigodinho do neonazismo tecnomidiático. E o pior é que não é um lustre heideggeriano, mas, sic, adorniano...
    Tomara que essa perspectiva, de destelevizar o mundo futuro, se transforme numa utopia concreta... (você viu que suprimi uma parte, mas, bem, pense que posso ter poupado alguns utopistas... vamos guardar energia para os grandes combates)

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  3. Oi, Lúcio. lembrei de registrar uma discordância importante. Acho que o seu argumento "etimológico" (pra tratar a coisa com leveza) relativo ao Bial, e que aliás eu nem sei se está correto, ajuda em qualquer sentido positivo. Suponho que haja muitos Bial (e Blau) dignos por aí. Quem sabe até alguns Hitler... Como portador de mais de um nome com origem maldita (no sentido etimológico), sei o quanto esse tipo de avaliação pode comportar de injustiça. Minhas ascendÊNCIAS "malditas", aliás, talvez não se refiram apenas a "vítimas", mas também "algozes" (que sem dúvida existem, mas nunca foram só de um credo, "raça", nada disso). Meu Giordano, por exemplo, é tão judeu quanto italiano, se sabe-se lá que gestos não fizeram as mãos de um italiano? E sabe uma coisa engraçada? Apenas quando eu me dei totalmente conta disso, quero dizer, dessa possbilidade, quase ao mesmo tempo em que soube (bem depois de formado, em Letras...) a etimologia óbia desse nome, que eu desprezava pela mera origem européia, é que eu me conciliei inteiramente com ele. É, amigo, se existe em nós algum tipo de genética ou inconsciente histórico, ele é um troço escabroso.

    Aliás, quero esclarecer uma coisa, digamos, mais abstrata, mas que talvez tenha a ver com isso tudo. Quando digo que acredito mais em anjos que em fantasmas (não, é verdade, creio em anjos, sim, quanto a fantasmas tenho dúvidas), enfim, o que eu quero sublinhar com isso é certa aversão a demonizar a história, a investi-la de uma espécie de horror metafísico. Sei o quanto isso parece remeter (ainda mais em vista do fantasma de que falávamos) a uma complacência com Auschwitz, mas não é isso. A uma espécie de pedido ou esperança de clemência, sim. Por quem? Por todos nós? Por quantos de nós? Não sei.

    Abraço! Fora essa sua luzidia filiação, não sei seu nome, mas sei - e sei que você sabe - que somos irmãos! Que maravilha esse blog já ter produzido esse encontro! E, bem, sme desculpe e as MINHAS brincadeiras "etimológicas" também são incômodas... Mas saiba que eu soube que o meu sobrenome também pode ser de origem "trevosa" - aliás, também não, o seu é luminoso! Mas, enfim, Ravel (segundo um dicionário online que não dá nenhuma garantia) = RAVEN. Se eu tivesse um blog chamado arquivos CRIPTICOS, acho que assinaria assim.

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  4. OPA!! Eu quis dizer que o argumento NÃO ajuda em nada!! Deve ser um castigo por minha chatice... Mas vejo que a ssunto é sério: se condenarmos o Bial por seus olhos azuis (ele os tem? confesso: não vejo tv!!!), o que faremos com tantos outros, menos sorridentes mas mais sinceros?

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  5. Salve, Lúcio! Vc não comentou meus comentários, então vou fazer mais um. Há um detalhe interessante entre a prática do uso do celular e a questão da vida alheia: publicamente, essa prática constituiu uma forma de "alheamento" de nossas vidas, não só no sentido de distanciamento do espaço e das pessoas circundantes como de simulação de nossa vida como "outra" vida, portadora de "mistérios" muito semelhantes aos que alimentam as novelas...

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  6. Oi, "Raven". Só agora estou vendo! Me dê notícias quando for assim. Estou numa transa lixo extraordinário. Tb vivo numa pequena cidade sem cinema nem teatro. É como ter nascido em Koenigsberg. E antes dela ter virado Kalinigrado. kkk, sim, somos irmãos, não bróders!

    Esse artigo tem pelo menos uma enorme provocação, escandalosa e q vc não viu: ele concorda, indiretamente, com Ahmadinejad quando diz que o holocausto é um mito! Depois de escrito, temi que alguém me chamasse a atenção disso! Portanto, entendo mito no sentido o Barthes mesmo: uma fala que surge a partir de fatos, mas vai além deles e que pode justificar muitas coisas. Na Ucrânia, por exemplo, fala-se em Holodomor, o holocausto ucraniano, etc.

    Então, acho q fui cruel não só com Bial. Mas pelo menos o episódio dos broders vestidos do frango confirmou parte da análise: costumeiramente, nosso sistema sacrifica as pessoas em prol das coisas.

    Quanto ao celular, o youtube e o hotmail exigem uma conta de celular a propósito da pessoa mostrar que existe. Estou excluído dos dois, agora. Não tenho celular, logo não existo!


    Abs!

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  7. Oi, Lúcio!
    Desculpe, achei que ia um aviso automático pra você. Sou novo nessas praias. Também acho que o Holocausto precisa ser assumido como um mito no sentido barthesiano (não havia, mesmo, notado essa sugestão), mas acho que essa decisão precisa ser tomada com o espírito da assunção dos riscos, ou seja, como uma decisão de não aceitar as camadas de "revestimento do real" (que é tudo o que nos chega, afinal de contas) como a "coisa em si" EM RESPEITO AO PRÓPRIO REAL, que fica lá, irrecuperável, mas sempre nos espreitando com suas demandas insuportáveis. Enfim, talvez devêssemos, todos nós, parar de usar a palavra Auschwitz metaforicamente. Ela se tornou tão fácil e apenas supostamente plena de sentido quanto, por exemplo, a palavra amor. Ou, puta merda, a palavra irmão, como brother, bró e o caralho a quatro. É, mano, o Barth tinha razão: a língua é fascista. A questão é: o que vamos fazer com tudo isso, ou seja, com tudo o que nós somos. Talvez (me ocorre agora), fazer isso mesmo: começar a treinar para não ser.
    Abraço!

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  8. Oi, Lúcio!
    Mais um comentário, porque essa questão da fraternidade (e dos fratricídios) me interessa diretamente.
    É que eu tenho me perguntado muito se não seria necessário, do ponto de vista da fidelidade crítica a algo efetivamente transformador, aprender a amar como irmão, digamos, o Pedro Bial. Isso - essa decisão crítica - parece muito abstrata, mas creio que ela reenforma toda a dimensão e potência do pensamento crítico.
    E, bem, acho que você vai discordar veementemente disso, mas quem pode dizer de qual lado da trincheira o Bial ficaria num situação de divisão de águas supostamente inequívoca?
    Acho que o fato de o Bia, além do Big Brother e todo o resto, ter escrito uma biografia autorizada do Roberto Marinho não é um indício muito animador, mas há aquele filme baseado no G. Rosa, por exemplo.
    E penso que um "testemunho" como essa biografia se prestaria uma excelente desconstrução esquizoanalítica de nossa história recente...
    Enfim, há outras perspectivas interessantes de analisar o "evento Bial".
    Abraço,
    Ravel.

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  9. PS: Ravel, o próprio Bial é quem fez essa exegese da origem do seu nome como blau na revista Rolling Stone, há algum tempo atrás.

    Abs!

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