VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O amor nos tempos do porrete


Desculpem-me os colegas mais exigentes, mas, apesar da referência a García Márquez, eu começo de novo citando Renato Russo, que disse (num show em Campo Grande que eu não tive a sorte de ver) que transava até com porco-espinho. Eu, cuja experiência mais próxima da zoofilia foi uma paixão platônica pela Maga Patológika, não tenho opinião formada sobre o assunto. Mas desde que vi Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo etc., de Woody Allen (especificamente, o episódio estrelado por Gene Wilder, numa dobradinha fantástica), e que soube de muita gente boa (inclusive um ex-policial) que teve sua iniciação sexual com vacas ou ovelhas, deixei de me escandalizar com essas coisas.

Aliás, nem é bem disso que se trata na foto acima, um registro que ocasionou, segundo notícia amplamente divulgada, o afastamento dos "envolvidos". E diante desse fato eu me pergunto: é esse tipo de excesso que causa afastamento de policiais (no caso, em Santa Catarina)?

Não que haja aí, propriamente, esse atributo moral cada dia mais raro chamado inocência. Os rostos que podemos ver não exprimem maldade ou sarcasmo, e sim uma malícia comum em brincadeiras masculinas. Mas, sem sacanagem, o buraco é mais embaixo: alguém duvida que essas pessoas só se atrevem a fazer isso porque são quem são, ou seja, porque vestem a farda que vestem? Ou, inversamente, alguém acredita que outras pessoas (em "sã consciência") se atreveriam a fazer o mesmo diante dessas pessoas fardadas?

Quando vi essa notícia me lembrei de uma experiência - na verdade, lembrei-me dela outras vezes esses dias - que tive o desprazer de viver em São Paulo. Eu, a Josy, grávida, e o Chico, então um bebê, saíamos da rodoviária da Barra Funda pela Francisco Matarazzo, e na calçada uns rapazes tomavam baculejo, enquanto o policial (um oficial?) que comandava a operação apressava "educadamente" os passantes. Como a Josy, de barriga já bem avantajada, começou praticamente a correr, eu disse que não precisava ser tão depressa assim. Não lembro o conteúdo verbal exato da reação do representante da lei, mas só o gesto que ele fez, com o cassetete ou coisa mais ameaçadora, já foi suficiente para que eu mesmo puxasse a Josy, assustado.

Coisas da vida. Enfim, nada demais, a meu ver, em simular um "ato de amor" com uma vaquinha de inspiração folclórica. Nosso folclore, aliás, tem lá sua malícia, e hoje em dia até os desenhos animados brincam com coisas desse tipo. Mas quando esse ato advém de um policial cercado por seus colegas, e que provavelmente impediria que outras pessoas o praticassem, é difícil não ver aí uma prova da psicologia do autoritaritarismo que ainda grassa entre nós.

O que não elimina a pergunta, que convém refinar: e os atos de truculência contra seres humanos (de verdade) cometidos por policiais, sob ordens superiores ou não, quando gerarão automaticamente processos disciplinares? Aliás, até quando vamos  conviver com esse "resquício" autoritário que é uma "sociedade livre" onstensivamente vigiada por polícias militares?

E se o caso é de atentado contra bovinos, uma notícia como essa me parece muito mais atroz, aliás como o cotidiano de qualquer matadouro.


P.S. em 05/02 -
O que acontece agora em Salvador-BA é "apenas" uma consequência extrema (mas não necessariamente a mais extrema) de uma "ordem social" fundada muito na vigilância e no armamentismo ostensivos, e não na justiça social.

2 comentários:

  1. Olá, Ravel!
    Só pra relaxar
    ouvindo uma variação sobre o mesmo tema.

    Não Vendo, Nem Troco
    (Luiz Gonzaga e Gonzaga Jr.
    ...a versão dos dois pode ser ouvida aqui:

    http://mais.uol.com.br/view/e8h4xmy8lnu8/luiz-gonzaga---nao-vendo-nem-troco-04021C3266C8C94346?types=A&

    Olha que pedaço
    É pra sonhar!
    Que coisa mais bonita,
    Que belo animal!

    Você está querendo se
    Engraçar
    Não é pra vender,
    Nem é pra trocar
    Olha que molejo que ela tem
    Beleza sem igual
    Que graça tem também
    Ela é formosa,
    Sei muito bem,
    Por isso que ela é minha,
    Não divido com ninguém
    É meu xodó,
    É meus amô
    Ela me acompanha
    Pelos canto adonde eu vô
    É companhia de qualidade
    É de confiança e tranquilidade

    Tenha mais vergonha
    Tenha mais respeito
    Ela não se engraça
    Com qualquer sujeito
    Mas com esse molejo,
    Com esse tempero
    Você não compra nunca
    Guarde seu dinheiro
    Mas é que ela é cobiçada
    Em todo esse sertão
    Essa véia é minha
    E eu não troco não
    Essa véia é minha vida,
    Vendo não sinhô!
    Essa égua eu não vendo,
    Não troco, nem dô


    ...e uma versão mais safada do CD 2:
    Dominguinhos e Convidados cantam Luiz Gonzaga
    cantada por Dominguinho e Zé Ramalho pode ser ouvida aqui:

    http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/ze-ramalho/nao-vendo-nem-troco/1057390

    Nota: Não tenho o teu e.mail
    pra enviar a relação de HQs.

    Abração!

    T+

    ResponderExcluir
  2. Valeu, Joba, muito bom... O Mazzaropi podia ter filmado, re re.

    ResponderExcluir