VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Matadouros de Anjos

Recentemente, observando a semelhança entre dois textos, resolvi recolher as duas violentas pérolas e me debruçar sobre elas. Uma é de Eustáquio Gorgone de Oliveira, e outra de Luiz Alberto Brandão Santos. A primeira é Matadouros:

Matar! Matar! Matar!
Panças e bexigas floridas
Nas paredes, no chão.
Chifres serrados se tornam
Genuflexórios da dor.
E os punhais vão separando
A língua, os olhos.
Orquídeas roxas de sangue
Brotam nos ladrilhos
Do corredor.
(O sol é uma lâmpada
Que ilumina pela janela
As correntes de ferro.)
Matar! Matar! Matar!
Dentro das veias secam
Rios de violetas.
Algumas flores fogem para os intestinos.
Mas os punhais vão procurando
As raízes da vida.
Até o músculo é um vento
Que os homens retalham. (Jornal Poiesis, ano V, número 45, março de 1997)

Nesta elegia sem adeus, Eustáquio insiste em olhar para o mundo como um grande matadouro, onde a morte é organizada que o ser humano orquestra. O humanismo é o grande ausente deste texto. O ego se vê diante da contingência, sente a finitude da carne, descobre que o ser é o ser para a morte, e o texto fixa as evidências obsessivas, claramente densas e já repisadas, da extinção da vida.

O poema encena também o genuflexório onde o autor se senta para orar depois da experiência excruciante do negativo. O próprio ritual da comunhão é uma antropofagia ritual; como um apóstolo descrente, o poeta constata a profundidade do corte que atingiu a civilização definida por Jesus, e para transcrever essa medusina experiência em palavras, recorre à observação da morte em escala industrial nos matadouros de animais. Luiz Alberto Brandão narra experiência semelhante, construindo, para transmiti-la, uma poética de anjos, que segundo ele “constitui-se de dogmas absolutamente escorregadios. Deve ser, sobretudo, rigorosamente impalpável.” Novamente, uma espécie de Judas sincero arranca a carne e a devora com sofreguidão, bebe o vinho e, pândego, se embriaga ao Comer Um Anjo: “Pelo faro/ Come-se um anjo/ Minuciosamente/ Mastiga-se a fibrosa/ Textura do seu nada/ Lentamente o oco azulado dos seus pântanos de asas/ A alimentar abstrações/ E descuidos/ Basta engolir aquele ar rarefeito/ Movediço./ Com o gosto úmido de galhos altos/ De diamantes em fatias luminosas./ Sabor caudaloso de minúsculas nostalgias/ Tempera-se somente o calafrio/ Do seu imponderável sexo de rosas./ O gosto de ângulos/ Somente/ Tosta-se o puro movimento/ Que se desprende dos músculos/ Tem gosto de silvos/ De silvos e cabelos/ Granulados/ em camadas levíssimas/ Basta inebriar/ Para que sejam insaciáveis as fomes/ Mas atenção:/ Ao comer um anjo/ Prepare seu sorriso/ Mais tosco/ Mesmo gargalhe/ Pois o corpo corrói-se/ Com a absurda delicadeza dos vácuos/ Estranhezas/ Trepidações/ A estufar todas/ As têmporas e linfas/ Suspira-se granito/ Arrota-se uma infinidade de cacos vazios/ E finalmente dorme-se/ Primitivo sono de nuvens/ Ou então/ Para aqueles de paladar intratável/ Vomita-se uma canção bizarra/ Uma canção bizarra e docemente longínqua.” (Revista Literária, ano XXVII, número 25, dez.93, jan. 94)

Como no poema de Eustáquio, a experiência do eu lírico simula a aventura de Perseu, a de olhar no rosto das Górgones; é como se o eu do poeta, ao invés de decapitar a Medusa, devorasse o monstro. Daí talvez Perseu também saísse suspirando granito e arrotando cacos da cultura clássica greco-romana.

Completando a idéia de que Matadouros e Comer um Anjo são poemas de beira-abismo, são fragmentos que observam o impasse de uma civilização, diante da qual o abismo se abriu, cito Walter Benjamin, que comenta em seu texto Sobre o Conceito de História:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Magia e Técnica, Arte e Política, Walter Benjamin, p. 226, Ed. Brasiliense)

O anjo da história citado acima enfrenta o progresso, que, enfim, se mostrou algo diferente do previsto por Hegel e Marx. O principal alvo de Walter Benjamin, a meu ver, é o materialismo histórico, e para tanto dispõe de uma figura mística para o desmistificar.

O poeta, ao descrever a receita de como se come um anjo, voluntariamente equaciona comer com copular, e de fato, é comum em várias línguas esta semelhança entre os dois vocábulos. É de profanação, dessacralização que de fato estamos falando. Tanto no poema de Eustáquio como no de Luiz Alberto, o eu devorador, matador, sádico, glutão, goza ao se entregar aos instintos de morte. O anjo é o mediador entre Deus e os homens. Na Bíblia é ele quem anuncia a chegada de Jesus. Matar o anjo e deleitar-se com sua carne, como se fosse carne de frango, é bruta negação de Deus. Na ausência de Deus, não há culpa, piedade, má consciência. A subjetividade de um, em Matadouros, busca a beleza na destruição do outro, desafia Deus em seu sadismo, saboreia e deglute o sexo do seu mensageiro, pois crê que Deus, se existe, é um proprietário desleixado e pode ser desafiado.

Lúcio Jr.

Nota póstuma: como me informa seu autor, o texto acima já foi publicado na web; entretanto, sua afinidade com o espírito do arquivos críticos justifica sua republicação aqui.

7 comentários:

  1. Salve, ó Lucius Jr. do Espírito Santo! Não sei se vc chegou a presenciar a, digamos, operação, uma operação, digamos, autocensória. Explico: ilustrei seu texto com uma imagem e depois a troqui por outra, do mesmo Angelus Novus do Paul Klee. É que eu mesmo me assustei com a imagem que havia escolhido, na qual o quadro (é um quadro mesmo? ele me lembra o... santo sudário!), enfim, o quadro aperece em um tom violentamente vermelho. Naturalmente, foi a virulência do seu texto e dos poemas que me inspirou a escolha; mas temas como esses se prestam à reflexão, não à exposição nos açougues da vida. Enfim, o post perdeu em "shock" mas ganhou em decência, além da sutileza contrastiva salutar, pois o vermelho do título (pura - "pura"? - coincidência) já ilustra o bastante seu texto.
    A propósito, há um texto, digamos assim, atribuível a Machado de Assis (mas cujo "coletor", o Jean-Michel Massa, recusa tal atribuição) sobre o horror dos matadouros. Está nos Dispersos do Massa, se você tiver acesso não deixe de ler. É muito forte, penso que seja do Machado, sim. Abraço!

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  2. Detalhe estilístico importante: quis "é forte E penso que seja do Machado", não que seja do Machado PORQUE é forte. Na verdade, vejo essa virulência oculta (mas também uma ternura, idem ou nem tanto) em muita coisa dele. Grande Machado! Oswald, com todo o respeito!, é uma rapinha do tacho dele... Aliás, me mande seu endereço por e-mail, quero lhe mandar minha tese.

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  3. Oi, Ravel. O Oswald é Machado liberado, Machado sem foice, cortando para tudo quanto é lado! Também sinto essa contundência num texto dele sobre a focinheira que os escravos usavam, não lembro o nome, mas senti e pensei, nossa, como isso é forte.

    Vi os dois quadros...esse post é de uma certa forma uma sacanagem, uma canibalização do Benjamin não acha não?

    Abs!

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  4. Pois é, eu poderia ter posto uma sequência dessas remanufaturagens do Klee, porque o angelus novus, a essa altura, já é pop arte... Aliás, salvo engano, o Benjamin não discute isso no texto sobre as técnicas de reprodução: como a modificação do original (ele se atém à ideia de uma suposta cópia perfeita) pode, de certa forma, instaurar uma ânsia por ele. Eu mesmo não tenho ideia de qual seja o Angelus verdadeiro, mas com certeza não é aquele "sangrento". Sua (e minha) canibalização, penso, é mais do Klee que do Benjamin, que aliás inicia isso (a canibalização do Angelus). A questão nova que surge nesse post, digamos, como evento, é explicitar a relação do mundo das técnicas de reprodução com o das carnicerias cotidianas.
    Oswald, Machado liberdado? É uma fórmula justa, o que há de grandioso no Oswald, mais inclusive que no Mário,tem mesmo a ver com a liberdade de espírito. Mas vc precisa ler o meu "Machado floricultor", re re. A propósito, pedi seu endereço residencial; mande-o para meu e-mail.
    O conto do Machado é "Pai contra mãe". Mas procure a crônica "O autor de si mesmo" (o título foi dado pelo filho do José de Alencar,m o Mário de Alencar).
    Abraço!

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  5. Mas você pode ter se referido a isso de confrontar o Benjamin e o materialismo histórico, mas isso não é bem uma sacanagem com o Benjamin, é uma tentativação de salvação dele...

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  6. oi, Ravel. Há quanto tempo! Citei esse texto num aula de ead e o encontrei aqui em seu blog...mandei ao professor. abs do Lúcio Jr.

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