VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Administração para a morte


Quando Adorno nas suas críticas contundentes acerca do capitalismo avançado e das vinculações da democracia com o totalitarismo, afirma que Auschwitz é mais do que um campo de concentração, mas, sim, tornou-se uma alegoria do "capital desencantado" (ou do trabalho morto, ao contrário da máxima encontrada nos campos de concentração de que "o trabalho liberta"), isto fornece subsídios mais do que suficientes para se pensar em qualquer fenômeno contemporâneo - cultural, político, social, psicológico - que instila violência, medo, impotência e angústia nas pessoas. Se for certo que hoje, para se fazer a denúncia de situações que reforçam as condições de desumanização dos sujeitos, devemos exagerar nossas análises - "o exagero é a única forma de revelar a verdade"-, é justamente porque isto acaba por comprovar o quanto estamos acostumados com a barbarização da vida cotidiana; ou, talvez, anestesiados com o horror gerado pelo mundo administrado cujas consequências são as apatias generalizadas de grande parte de pessoas frente aos acontecimentos.

É neste sentido que o tema sobre "suicídio no trabalho", estudado recentemente por pesquisadores franceses (vide Cristophe Dejours nas pesquisas sobre "psicodinâmica do trabalho"), tem apontado para a similaridade das 'gestões de trabalho' encontradas nas grandes e médias empresas, com os princípios nazi-facistas de administração burocrática aplicados nos campos de concentração e nas fábricas de produção bélica do período entre-guerras. O suicídio do empregado no local de trabalho (o "antigo" trabalhador denominado, hoje, pelo discurso neoliberal de "operador", "empregado") cada vez mais corrente na Europa, mais do que um ato de desespero ou de "desequilíbrio psíquico" do sujeito mediante as pressões cruéis de trabalho, torna-se a expressão máxima das intrínsecas relações da razão instrumental com a destrutividade em prol da produção econômica. Esta forma de "morticínio administrado" (dentre outras formas de horror na atualidade, inclusive, campos de concentração, deportação de etnias, grupos de extermínio, etc) torna legítima as afirmações de Adorno sobre a continuidade de condições objetivas e subjetivas no capitalismo tardio que foram propícias ao clima cultural que permitiu Auschwitz que, por sua vez, desdobra-se em novos acontecimentos na contemporaneidade. Desses acontecimentos, por exemplo, pensamos na ocorrência de suicídios de sujeitos que, aparentemente, são considerados adaptados ao sistema, com seus salários e estilo de vida conformista, passíveis de causar inveja às milhares de pessoas desempregadas e excluídas do trabalho formal. Entretanto, tais sujeitos que até chegam a ocupar altos cargos nas grandes empresas (a de aço, automobilística, eletricidade, telecomunicações) atentam contra as suas próprias vidas nos locais de trabalho, assim denunciado o que se oculta por trás das novas organizações empresariais com suas fachadas limpas e higiênicas denominadas de "vitrines do progresso".

No filme "O Corte", de Costa Gravas, o personagem central - um engenheiro chamado Bruno Darvert - ao ser demitido após 15 anos de trabalho numa empresa de papéis não se mata, mas torna-se assassino de seus possíveis concorrentes (também desempregados) no mercado de trabalho. O filme ilustra bem o modelo econômico mundial no qual vivemos e elucida a temática aqui colocada: as pessoas sob o capitalismo tardio, em face das condições desumanas e de "darwinismo social" suscitado pelo modelo econômico neoliberal, têm eliminado umas às outras para garantir a autoconservação desenfreada pelo capital. E aquelas que não agüentam as pressões de uma racionalidade (de modelos administrativos e de uma totalidade social) que é, em si, irracional, acabam atentando contra suas próprias vidas, significando uma situação na qual as organizações sindicais tornaram-se inócuas, e na qual o sacrifício individual – princípio que rege nossas vidas no sistema capitalista -, ao lado do enfraquecimento de instituições sociais formadoras, tornou-se norma ao ponto do sacrifício ser a própria vida do sujeito. No filme, o desemprego é mostrado como fator também determinante do modo de funcionamento capitalista - as pessoas são descartáveis e somente úteis quando, contraditoriamente, passam a integrar o exército industrial de reserva.

A reestruturação das novas formas de trabalho tem ocasionado efeitos funestos na psicodinâmica dos sujeitos, assim validando as teses dos frankfurtianos (Adorno, Horkheimer e Marcuse) acerca do mundo administrado, ou da sociedade unidimensional. Ao contrário do que Marcuse pressupôs acerca da automação do trabalho e suas conseqüências positivas para o tempo livre, o homem não acabou sendo liberado para o “jogo das livres pulsões eróticas”; ao contrário, a vida da classe trabalhadora tem se tornado pior, pois tem aumentado a intensificação do trabalho associada, agora, às novas formas de controle sobre o trabalhador, assim liberando suas pulsões destrutivas e mortais. Não à toa, lembramos do aforismo de Adorno “A saúde para a morte”, em que ele fala sobre como a “velha injustiça” ainda continua sob o véu tecnológico e sob a racionalização do trabalho. A dor corporal, a dor física, sob o trabalho alienado ainda subsiste; os mecanismos psicológicos de defesa do trabalhador têm falhado mediante tais situações de crueldade e de desumanização que se escondem por trás da fachada de um ambiente “limpo”, “democrático” e altamente gerenciado por especialistas competentes do mundo do trabalho (administradores, psicólogos organizacionais, gestores). Os recursos científicos e administrativos aplicados nas empresas encobrem e esterilizam a dor e o sofrimento psicológico dos sujeitos no ambiente de trabalho, assim acirrando a competição entre as pessoas e extinguindo qualquer tipo de pensamento crítico – ou você se adapta (às custas do adoecimento psíquico) ou você morre. Eis Auschwitz como “alegoria do capital”.

5 comentários:

  1. Hum... Em qualquer sistema pode-se evidenciar sacrifício de duas formas: renúncia voluntária ou forçada. No capitalismo se é usado e usa-se; por força priva-se da consciência a fim de explorar o meio, e voluntariamente admira-se a prosperidade alcançada com esmero e ética. No socialismo se explora, ou se divide, ainda mais. As pessoas abrem mão de serem proprietários de suas potencialidades, voluntariamente ou não. A ambição é reprimida, a paciência é supervalorizada. Se o socialismo é melhor, quanto maior o nível de sacrifício das pessoas, melhor é o sistema. O homem é mal desde a infância, é melhor sacrificar seus instintos. Mas será que a felicidade, que é o importante, é tão dependente do sistema? Poxa, prova-se se o sistema é bom quando consegue englobar a todos... muito vago isso. Se estiver desempregado, está excluído. Eu estou desempregado e estou no sistema! É... mas também fugi para a escola para não ser discriminado (risos). Mas o importante é que estou feliz.
    Abraço!

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  2. Lindo texto Ana!Hoje li um livro do saudoso Octávio Ianni chamado Capitalismo,Violência e Terrorismo publicado em 2004. Ele abraça as teses frankfurtianas da relação do nazismo com o desenvolvimento da razão instrumental,da racionalização que se desenvolve com o capitalismo. A fábrica capitalista é o protótipo dos campos de concentração, cuja lógica se estende para a cidade,a cultura e as relações interpessoais e afetivas. É o reino da barbárie administrada.

    Um abraço fraterno.

    Sebastião.

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  3. Obrigada, Sebastião! Vindo de você é um GRANDE elogio (só você entende a teoria crítica rsrsrs).
    Abração!

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  4. Oi, Ana! Faz tanto que quero fazer esse comentário que até pensei que já o tinha feito. É que pouco antes da sua postagem eu havia pensado sobre minha ânsia mais ou menos recente de "achar uma colocação", ou seja, de fazer um concurso em uma universidade federal etc. Você não só testemunhou isso como me abrigou (e a uma verdadeira trupe - de desaprovados!) em sua casa num dessas circunstâncias... Pois eu acabei desistindo meio que naturalmente disso; um tipo de conformismo, decerto, mas, enfim, com isso preservei mais algumas migualhas de meu tempo livre, que é o que me permite, por exemplo, "perdê-lo" agora. É engraçado como quem dizer zelar por uma atuação e consciência críticas muitas vezes não pensa criticamente seus próprios meios e instrumentos de atuação, sendo que o mundo (o "desenvolvimento material das forças produtivas" etc.) não apenas torna isso como também um projeto de desconstrução - eu diria desfabricação - do aparato técnico-opressivo reinante uma demanda cada vez mais premente. E, lembrando a mensagem sobre a receita vegetariana que você atribuiu (não sem razão!) a um doido, você sabe - e é uma demanda minha expressar isso sempre - que pra mim isso tem uma dimensão uma dimensão antropológica literalmente visceral. A foto que você escolheu me lembra tremendamente a entrada de um matadouro (aliás, você fez sua postagem no mesmo dia que eu fiz a última do Lúcio), e há inclusive um livro do Kurt Vonnegut sobre a 2a Guerra chamado Matadouro 5, e, enfim, eu fiquei pensando o que diria diante de tal portal um boi "a serviço" do homem que soubesse ler alemão (ou tivesse acesso ao tradutor do google, como eu tenho). Aliás, estou lendo A Máquina do Tempo do Wells, e acabo de chagar na parte em que o narrador diz que os Elois sãpapenas carne de engorda dos Morlocks. E nós, seremos de quem?
    E tenho mugido!
    Abração,
    Ravel.

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  5. Tem outra coisa: na tradição do marxismo clássico, o trabalho - a práxis, conceito "materialismo" de herança, no fundo, idealista-hegeliana - e, enfim, o supracitado "desenvolvimento das forças materiais", e a "consciência do proletariado" etc., também libertam. Mas eu acho que, mesmo com todo o risco das vizinhanças perigosas, há aí uma dimensão afirmativa e fundamental, enquanto delineadora, mesmo, dos horizontes existenciais, que nós, ditos intelectuais, estamos sempre em vias de perder. Meu relativo incômodo (porque há aí também, é claro, algo de fundamental) com a centralidade da noção de negatividade em Adorno tem a ver com isso. Aliás, Derrida (para recuperar o segundo nome que invoquei na postagem inicial do blog) também tem uma ênfase na negatividade, embora de forma diferente, mais ligada, talvez, à tradição da teologia negativa. E tanto isso quanto apostar as fichas num conceito subsunsor como o Espírito Absoluto pra mim tem sempre um gostinho de niilismo europeu...
    Abço,
    R.

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