Quando, há três ou quatro dias, eu saí da sala de cinema depois de ver Max Max – Fury Road, o único pensamento mais ou menos formulado que eu tinha na cabeça era este: “Meu Deus, quanto eu não daria pra ter meu nome perdido no meio da multidão de nomes dos créditos finais desse filme!”. Nem que fosse, sei lá, como faxineiro; e tanto por vaidade quanto para ter visto um pouquinho daquilo se construindo.
Depois, caminhando pelas prosaicas
avenidas Afonso Pena e Ceará em direção ao terminal de ônibus, o deslumbramento
foi cedendo ao senso de realidade. Claro, com todo o primor de seus efeitos
especiais e a força sintética mas certeira de seu argumento, Mad Max não
foge a alguns elementos básicos dos filmes de ação hollywoodyanos, entre eles a
crassa inverossimilhança de, digamos, seu resultado (já que ele se estrutura
como uma espécie de competição) e certos atenuantes da radicalidade ideológica (afinal, o conflito se dá entre, digamos, membros da elite).
Enfim, decidi esperar alguns dias
para escrever sobre o filme. O ideal seria assisti-lo mais uma vez, o que eu
gostaria muito, mas ele ficou pouquíssimas semanas em cartaz em Campo
Grande. (Quem perdeu, recomendo que espere a versão blue-ray.) O fato é que, passados três ou
quatro dias, e como não podia deixar de ser, a admiração voltou a se sobrepor
aos reparos críticos. Porque o Mad Max de George Miller é mesmo um grande
filme, talvez uma obra-prima; no mínimo, um dos maiores filmes entre os que
unem ação e ficção científica de todos os tempos.
Mais do que uma continuação da saga,
Miller (e seus parceiros, pois mais três ou quatro assinam o roteiro com ele)
empreende uma releitura ou atualização radical de seu personagem. Aqui, mais do
que nunca, Max faz plena justiça a seu epíteto. Mas muito já se disse sobre
isso e sobre as virtudes desse filme que tem, de fato, o mérito de aliar primor
técnico e profundidade humana e político-social. O que vou tentar fazer é
sopesar o equilíbrio entre esses elementos.
E para dizer logo o fundamental,
digo o seguinte: de um modo geral, o imenso aparato técnico mobilizado por
Miller não dilui a força humana do filme, mas se soma a ela, na verdade ajuda a
expressá-la. A palavra “expressão”, aliás, vem bem a calhar aqui. As
ressonâncias de Fritz Lang e as homenagens a Murnau não são gratuitas: como nos
filmes do Expressionismo Alemão, Fury Road é um filme onde cada quadro,
cada movimento de câmera e, portanto, mesmo cada tiro e cada porrada exprimem
uma significação humana.
(Atenção, aqui começam os spoilers. Quem não viu o filme, recomendo ver antes.)
Sim, Fury Road é antes de
mais nada um grande de filme de ação, mas a tortuosa caçada pelo deserto a
caminho do suposto Vale Verde das Várias Mães é acompanhada por um clima de
angústia que em nenhum momento se dissolve, e cada cena de ação reforça essa
angústia, inclusive pela relativa incerteza de sua conclusão – já que logo
percebemos que os fugitivos (embora com as exceções de praxe) realmente estão
sujeitos à morte.
O fato é que a angústia é a emoção
predominante no filme, e nisso Miller foge completamente à regra hollywoodyana:
a inevitável inversão de posições, quando os mocinhos enfim começam a se
sobrepor aos vilões, não se faz acompanhar de nenhuma euforia sádica, dessas
que tornam a morte de cada vilão um deleite para o espectador. Mesmo quando o
grande algoz é destroçado pela horda, isso soa como um ato de justiça um tanto
amargo, que atesta o horror da “realidade”.
Um detalhe que reforça isso é o
fato de que antes não víamos sinais de revolta na multidão de miseráveis: a
catarse vem “de dentro”, e não de um aliciamento demagógico operado pelo enredo
junto ao espectador (cuja posição, note-se bem, é mais afim à horda que aos
heróis: a de um aglomerado humano passivo).
Outro detalhe significativo: a
oscilação de uma das “esposas” entre a insistência na luta por liberdade e a submissão
a Immortan Joe não é punida com
uma morte sádica. No drama de sua oscilação, é sua humanidade, não a mera
tolice, que sobressai, e sem que palavras de explicação sejam necessárias para
isso: a relativa escassez de diálogos do filme não reduz o peso da dimensão
humana.
A força disso tudo deriva dos alvos
certeiros da dimensão política do enredo. Os senhores da guerra; a exploração
vampiresca do outro, particularmente da mulher; a fanatização religiosa como
estratégia de sujeição, aliada à monstruosa apropriação privada dos já escassos
recursos da Terra. Mesmo não explorados de forma exaustiva, esses temas pairam
de forma onipresente sobre cada cena.
Isso não impede que a grande
inversão – e facilitação – final se opere, e nisso Mad Max se assemelha
muito a outro grande filme de ação e ficção recente, o Elysium de Neill Blomkamp, do qual também tratei aqui. O que a
viagem de ida tem de difícil, a de volta – apesar das muitas perdas humanas –
tem de fácil. E no final tudo se revolve com uma facilidade embasbacante.
Sequer se oferece resistência aos novos, aliás, às novas senhoras das águas.
(Ficando, propositalmente ou não, a dúvida quanto a seu efetivo compromisso com
as hordas “populares”, já que o olhar de Max lá em baixo para cima sugere a manutenção
dessa distância.)
É como se os efeitos especiais
tivessem, no fim das contas, esse fim, ao mesmo técnico e político: a potência
pirotécnica da produção se transmite como que por osmose aos heróis
maltrapilhos, tornando-se, afinal, potência redentora.
Mas tudo bem, ou não tão mal, pelo
menos: com sua, digamos, relativa radicalidade antropológica e político-social,
Mad Max tem o imenso mérito de colocar determinadas questões com uma
força talvez única na intersecção dos gêneros ação e ficção. Ainda que, nele,
essa interseção permaneça palatável ao gosto do espectador médio americano
(incluindo-nos aí), a angustiosa questão colocada no filme se fixa no horizonte
de nosso próprio tempo: quem está matando o mundo?
E se
Miller ainda não desiste de falar em redenção, pelo menos não se trata da redenção da
fuga para um suposto paraíso, mas do olhar para trás, do retorno para o lugar de onde não se pode fugir: em seu cenário muito específico (o deserto da Namíbia), Max Max – Fury Road pode ajudar muita gente a se dar conta de que a África e seus problemas não são tão distantes assim.
Dedico esse post ao velho amigo que me apresentou o então jovem Max, e que hoje, coxinha consumado, provavelmente não gosta mais do personagem. Ao menos se quiser ser coerente consigo mesmo.