VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Asteróides Trio: Punkabilly

Esta é uma postagem oportunista em dois sentidos. Primeiro, no sentido de ela substitui outra, da qual desisti, sobre o show que o mesmo Asteróides Trio fez aqui em Campo Grande, com abertura da Aristocats. Queria muito ter escrito sobre essa dobradinha fantástica, mas já se passou tanto tempo que coisas as interessantes que eu poderia dizer se esvaíram completamente... Cérebro de queijo suíço, como dizia Norman Mailer...

Mas o segundo sentido é mais positivo. É que essa, digamos, operação substutiva é também uma ótima chance para iniciar a série de postagens sobre álbuns de canções (CDs, LPs, EPs etc.) que planejo há tempos. E fico feliz de começar com os Asteóides, que tive o prazer de conhecer e ver tocando.

Sobre o show no Hangar, só acrescento o seguinte: foi uma das coisas mais legais que presenciei este ano... Quem tiver a chance conferir esses três caras simprões de tudo mas cheios de talento fazendo música, não perca a chance. Formiga na guitarra e Weasel no baixão acústico à frente, e ao fundo Leandro Franco, tocando batera de pé e nos vocais principais, podem não ser os caras mais bonitos do mundo, mas ainda assim é uma bela cena.

Weasel
Asteróides Trio é uma banda de rockabilly formada em 2006 em Arujá-SP, e Punkabilly (2013) é o primeiro CD da banda, que, apesar de ter um bom repertório próprio (como pude constatar no Hangar), teve a humildade de se lançar com um trabalho de tributos ao punk rock nacional oitentista. A última música e mais três bonus tracks ao fim do CD dão uma mostra da qualidade do som autoral dos caras.

Punkabilly surpeende pela qualidade das versões, pelo cuidado com que cada canção original é adaptada à estética do rockabilly e sua sonoridade melódica e pulsante, que obriga o sujeito a dançar ou amargar uma coceira braba no pé; e sem perder o vigor das versões originais, mas sim transformá-lo em outra coisa.

"Pátria amada", o clássico absoluto dos Inocentes que abre o CD, por exemplo, deveria ficar estranha, com sua letra tão ácida adaptada ao ritmo ultradançante e às guitarrinhas ultramelódicas dos Asteróides, mas a verdade é que o efeito é ótimo. O tom épico e invocado do original dá lugar a um tom irônico que pode amortizar a raiva, mas não dilui em nada a acidez.

Na sequência, "Medo", obra-prima que abre o segundo disco do Cólera, está melhor ainda; chega a dar a impressão de que já nasceu um punkabilly. No caso de "Nicotina", dos gaúchos Replicantes, a adequação é ainda mais perfeita, pelo tema da juventude transviada com direito a blusão cheirando a cigarro. O mesmo vale para "Se o tempo voltasse" ("Se o seu pai pudesse escolher, você acha que o filho seria você?"), um dos grandes baratos da brasiliense Detrito Federal.

Claudio Formiga
Mas foi a música seguinte a "Nicotina" a que me mais me seduziu no disco. Os Asteróides transformaram a pegada toscona de "Delinquentes" do Fogo Cruzado numa levada deliciosa. "Delinquentes" é uma das peças que integram a histórica coletânea Sub, do começo dos anos 80, e seu refrão continua valendo: "Movimento punk nunca há de morrer!". Já não se trata da juventude transviada de "Nicotina", mas dos jovens marginais, os "garotos do subúrbio" que tornaram o punk paulistano, não vou dizer o mais autêntico, mas o mais forte do Brasil.

O mesmo vale pra "Rock do subúrbio" dos Garotos Podres, onde ao tema da revolta se soma o da consciência e do papel do movimento punk contra "a ordem burguesa que existe na música e na arte". São os momentos do disco em que o espírito do rock'a'billy se funde de forma mais íntegra ao do punk rock. As vozes rascantes de Mau (Garotos Podres) e de Ernandes (Fogo Cruzado) dão lugar a jogos de voz primorosos e até delicados, mas de alguma forma a rebeldia permanece íntegra.

Leandro Franco
Num único momento tive a impressão de que essa fusão não deu certo: em "Isto é olho seco", hino da também paulistana Olho Seco, que tem uma letra muito cabulosa pro formato "billy". E acho que no caso da homenagem ao 365 havia alternativas melhores a "Grândola, Vila Morena". Primeiro, porque eles mereciam o registro de uma canção própria (apesar da "Poesia" declamada antes de "Grândola"), e segundo porque a versão deles (365) do hino secreto da Revolução dos Cravos é tão boa que seria melhor não mexer com ela...

Mas nem por isso Punkabilly deixa de ser um CD e tanto. Sua proposta sonoro-conceitual revitaliza os clássicos regravados; explicita a ingenuidade das letras punk mas nisso mesmo resgata seu vigor, sua revolta e sua alegria primordiais.

As quatro músicas que fecham o trabalho confirmam a essência do punk no rockabilly do Asteróides Trio. O tema da rebeldia jovem em "Teddy, o primeiro da gangue a morrer" e na pesadona "Nancy, vamos para casa" é trabalhado com laivos de poesia marginal; e "Cérebro atrofiado" tematiza a alienação com influência explícita do Cólera.

Um disco, sem exagero, obrigatório pra qualquer punk ou fã de punk rock brasileiro.

Asteróides & Aristocats in Bigfield
Links

Asteróides Trio no myspace (só músicas próprias):
https://myspace.com/asteroidestrio/music/songs

Site oficial:
www.asteroidestrio.com.br

"Rock de subúrbio" ao vivo:
https://www.youtube.com/watch?v=bILbfr6Iook

Fotos de Nadia Ramone

Nenhum comentário:

Postar um comentário