VIVENCIAL
Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.
sábado, 21 de dezembro de 2013
Calaboca! e grita ou o silêncio do sentido
Assisti ontem a peça CALABOCA! e grita, de Jair Damasceno. A meu ver, um dos méritos da encenação foi ter arrancado aplausos tão tímidos - a bem da verdade, intimidados, pra não dizer amedrontados - da plateia, além de deixar um sujeito como eu sem saber o que dizer.
A força do espetáculo é indiscutível. A movimentação cênica, o trabalho com as vozes e a intensidade dramática me lembraram a única montagem que tive a honra de assistir de Antunes Filho, de As troianas. No entanto, mesmo sendo um texto perenemente trágico, exposição de uma tragédia humana e social permanente ou em curso, CALABOCA! nega ao espectador duas das satisfações fundamentais que Aristóteles apontou na tragédia: a catarse e, mais ainda, o reconhecimento. Foi só chegando em casa, já meio de ressaca da noite, que eu me toquei que a grande sacada do texto está justamente na tensão entre reconhecimento e não reconhecimento que ele exerce o tempo todo.
"Nada faz sentido, nada precisa fazer sentido" (ou coisa assim), gritam a protagonista e o coro várias vezes, com violência impactante. E, não obstante, algo muito forte ali faz sentido, uma situação de sexo e violência cuja "história", no entanto, não é apresentada.
Essa recusa ou desconstrução do enredo não é mera experimentação: ela é uma resposta simbólica - e, a seu modo, violenta - à primeira violência de todas, que é a apropriação, a posse do sentido do outro. Vemos uma alteridade feminina sofrer diante de nós mas não temos o sentido, a "história", desse drama íntimo, e essa recusa é um acinte à nossa expectativa de sentido: violenta simbolicamente nossa violência simbólica (e psíquica) primordial, nossa ânsia de sentido e posse do outro.
Quanto à insistência em despertar o diálogo e a reflexão em torno desse sentido/não sentido, a meu ver é um gesto legítimo, talvez essencial, no âmbito de um teatro crítico, que une influências beckettianas e brechtianas. Enfim, é bom saber que, ao contrário do que cheguei a pensar - e como demonstram não só os trabalhos de Damasceno como os de Breno Moroni -, Campo Grande tem sim um teatro de vanguarda.
domingo, 8 de dezembro de 2013
Asteróides Trio: Punkabilly
Mas o segundo sentido é mais positivo. É que essa, digamos, operação substutiva é também uma ótima chance para iniciar a série de postagens sobre álbuns de canções (CDs, LPs, EPs etc.) que planejo há tempos. E fico feliz de começar com os Asteóides, que tive o prazer de conhecer e ver tocando.
Sobre o show no Hangar, só acrescento o seguinte: foi uma das coisas mais legais que presenciei este ano... Quem tiver a chance conferir esses três caras simprões de tudo mas cheios de talento fazendo música, não perca a chance. Formiga na guitarra e Weasel no baixão acústico à frente, e ao fundo Leandro Franco, tocando batera de pé e nos vocais principais, podem não ser os caras mais bonitos do mundo, mas ainda assim é uma bela cena.
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Weasel |
Punkabilly surpeende pela qualidade das versões, pelo cuidado com que cada canção original é adaptada à estética do rockabilly e sua sonoridade melódica e pulsante, que obriga o sujeito a dançar ou amargar uma coceira braba no pé; e sem perder o vigor das versões originais, mas sim transformá-lo em outra coisa.
"Pátria amada", o clássico absoluto dos Inocentes que abre o CD, por exemplo, deveria ficar estranha, com sua letra tão ácida adaptada ao ritmo ultradançante e às guitarrinhas ultramelódicas dos Asteróides, mas a verdade é que o efeito é ótimo. O tom épico e invocado do original dá lugar a um tom irônico que pode amortizar a raiva, mas não dilui em nada a acidez.
Na sequência, "Medo", obra-prima que abre o segundo disco do Cólera, está melhor ainda; chega a dar a impressão de que já nasceu um punkabilly. No caso de "Nicotina", dos gaúchos Replicantes, a adequação é ainda mais perfeita, pelo tema da juventude transviada com direito a blusão cheirando a cigarro. O mesmo vale para "Se o tempo voltasse" ("Se o seu pai pudesse escolher, você acha que o filho seria você?"), um dos grandes baratos da brasiliense Detrito Federal.
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Claudio Formiga |
O mesmo vale pra "Rock do subúrbio" dos Garotos Podres, onde ao tema da revolta se soma o da consciência e do papel do movimento punk contra "a ordem burguesa que existe na música e na arte". São os momentos do disco em que o espírito do rock'a'billy se funde de forma mais íntegra ao do punk rock. As vozes rascantes de Mau (Garotos Podres) e de Ernandes (Fogo Cruzado) dão lugar a jogos de voz primorosos e até delicados, mas de alguma forma a rebeldia permanece íntegra.
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Leandro Franco |
Mas nem por isso Punkabilly deixa de ser um CD e tanto. Sua proposta sonoro-conceitual revitaliza os clássicos regravados; explicita a ingenuidade das letras punk mas nisso mesmo resgata seu vigor, sua revolta e sua alegria primordiais.
As quatro músicas que fecham o trabalho confirmam a essência do punk no rockabilly do Asteróides Trio. O tema da rebeldia jovem em "Teddy, o primeiro da gangue a morrer" e na pesadona "Nancy, vamos para casa" é trabalhado com laivos de poesia marginal; e "Cérebro atrofiado" tematiza a alienação com influência explícita do Cólera.
Um disco, sem exagero, obrigatório pra qualquer punk ou fã de punk rock brasileiro.
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Asteróides & Aristocats in Bigfield |
Asteróides Trio no myspace (só músicas próprias):
https://myspace.com/asteroidestrio/music/songs
Site oficial:
www.asteroidestrio.com.br
"Rock de subúrbio" ao vivo:
https://www.youtube.com/watch?v=bILbfr6Iook
Fotos de Nadia Ramone
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
Viva Mandela, viva a África!
A CRIANÇA QUE FOI MORTA A TIROS POR SOLDADOS EM NYANGA
A criança não está morta!
Ela levanta os punhos junto à sua mãe, que grita África!
Brada o anseio da liberdade e da estepe,
dos corações entre cordões de isolamento.
A criança levanta os punhos junto ao seu pai.
Na marcha das gerações, que grita África!
Brada o anseio da justiça e do sangue,
nas ruas, com o orgulho em prontidão para luta.
A criança não está morta!
Não em Langa, nem em Nyanga
Não em Orlando, nem em Sharpeville
Nem na delegacia de polícia em Filipos,
Onde jaz com uma bala no cérebro.
A criança é a sombra escura dos soldados
em prontidão com fuzis sarracenos e cassetetes
A criança está presente em todas as assembleias e tribunais
Surge aos pares, nas janelas das casas e nos corações das mães
Aquela criança, que só queria brincar sob o sol de Nyanga, está em toda parte!
Tornou-se um homem que marcha por toda a África
O filho crescido, um gigante que atravessa o mundo
Sem dar um só passo.
(Ingrid Jonker)
Este poema, lido por Mandela em seu primeiro discurso como Presidente da África do Sul, me foi enviado pela amiga e poeta Jhenifer Silva. Obrigado, Jhenifer! Viva Mandela, viva a Liberdade do povo negro e de toda a Humanidade!
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