Para Carol de olhos serenos.
I
Graças a um convite dos colegas
Marcus Villa Góis e Edneia Cerchiari, tive a chance, nesse fim de semana, não
só de conhecer como de debater o filme “La strada” (1954), de Federico Fellini.
Este post é uma tentativa de registro e ordenação de minha contribuição – de
improviso, numa fala um tanto confusa – nesse debate, que ocorreu na última sessão do projeto Sábado Cênico, no último dia 21, e que também contou com a participação de Miguel Eugênio de Almeida, Juliana Simkzac Treuherz e Aline Dessandre Duenha, além do próprio Marcus e da plateia.
Sempre fui um pouco arredio a essa
obra-prima de Fellini; em parte, eu acho, devido a esse mesmo elemento,
fundamental na película, que dá título a este post: o olhar de Gelsomina, com sua mistura de peraltice infantil e
carência temporã, entre outras coisas menos ou mais indefiníveis, sempre me incomodou
nas vezes que o vi em trailers do filme...
Não foi por acaso, portanto, que
escolhi esse tópico para dizer algo sobre essa obra que, confesso, me
surpreendeu muito mais do que eu esperava. Mas também, naturalmente, porque se
trata de um detalhe significantíssimo, que literalmente defronta – para não
dizer afronta – o tempo todo o espectador.
Com Zampanò |
Menos que apresentar uma leitura
sistemática, o que me propus foi dizer algo de bonito – essa expressão prosaica traduz melhor a intenção – sobre
esse filme que, antes e para além de tudo, emana uma grande e profunda beleza.
O que naturalmente não deixa de constituir uma leitura, mas não uma leitura
exploratória ou explicativa: talvez uma leitura essencialista – quiçá, epifânica –, no sentido de que busca
trazer à tona algo da essência de seu “objeto”.
Mas isso não significa abstrair o
filme de sua construção formal e seu contexto de produção. Pelo contrário, é no
interior destes que nasce a singularidade estética e espiritual – que são uma
coisa só – do objeto estético. Por isso, comecei tentando situar o cinema de
Fellini no interior de uma dicotomia conceitual, como todas problemática mas
que, bem manejada, pode ser bastante útil.
II
Essa dicotomia é a conhecida
oposição entre cinema de poesia e cinema de prosa, da qual se valeu,
décadas atrás, o cineasta sul-matogrossense Joel Pizzini – não sei se autor ou
não dessa distinção – ao falar de seu filme (“de poesia”) Caramujo Flor. Trata-se, em suma, de supor ou sustentar que existem
filmes ou cineastas onde o que impera é o tratamento estético da imagem e demais
recursos fílmicos – com fins de significação e não apenas com objetivos
técnicos e de verossimilhança –, e outros onde o que impera é a finalidade e o
tratamento realísticos da imagem e a narratividade fílmica.
Por mais teoricamente problemática que
seja – ainda mais aplicada a um cineasta que não raro extrai sua poesia do
cotidiano mais chão (além do fato de toda imagem fílmica ser simultaneamente um
trabalho estético com a imagem em si mesma e um registro temporal, “narrativo”)
–, essa distinção não deixa de ser útil para discutir procedimentos e aferir
gradações no que diz respeito, digamos, ao grau
de poeticidade de um filme.
"Coroada" como Carlitos |
E sem dúvida que os filmes de
Fellini são, de diferentes formas e com diferentes intensidades, extremamente poéticos, sem que deixem, quase
sempre, de versar sobre a prosa da vida;
além de serem, não digamos essencialmente, mas estruturalmente narrativos, ou seja, de assentarem sobre estruturas
narrativas, não raro (mas não sempre) básicas e convencionais. É o caso, aliás,
de La strada, basicamente um enredo –
e um jogo – cômico-dramático, com a
estrutura dramática se impondo no final.
Mas, em que pesem certos
momentos-chave, poesia e prosaísmo não são, em Fellini, elementos que se deixam,
simplesmente, substituir ou encobrir (como na “poesia” dos filmes hollywoodianos,
que recobre os conflitos) um pelo outro. Sem dúvida, muitas vezes o elemento
“poético” se sobrepõe explicitamente, enquanto em outros ele chega a parecer
ausente. Ele impera, por exemplo, em La
nave va, onde Fellini flerta com o surrealismo, enquanto em Amarcord ele se alterna de forma
delicada – e, portanto, em si mesma profundamente poética – com a
narratividade. Em La dolce vita – o
mais urbano e, talvez, mais desolado dos filmes de Fellini –, o prosaísmo
supostamente domina, mas, além de ser sempre muito relativo, deixa-se dissolver
num momento de poeticidade quase circense, chapliniana, como é a conhecida cena
do banho no chafariz.
De um modo geral, no entanto, em La dolce vita poeticidade e
narratividade convivem numa profunda e quase permanente tensão, manifesta, sobretudo, em diálogos espinhosos mas
profundamente inspirados, algo
semelhante a diálogos poético-filosóficos. E é um pouco assim, também – mas por
outros caminhos –, em La strada.
Um ótimo exemplo da tensão entre
prosa e poesia em La strada é a
sequência de abertura. Sinteticamente, ela narra (“registra”) a venda de Gelsomina
por sua mãe em condições que, no âmbito de um registro convencional, “realista”
e despido de ironia, se apresentariam como trágicas. De fato, logo na primeira
cena sabemos da morte de alguém, que logo adiante saberemos ser Rosa, suposta
filha (provavelmente mais velha) da mesma mãe que, agora, pede para Gelsomina acompanhar
o mesmo homem que havia levado a primeira (aliás, vende-a antes mesmo de
“consultá-la”)... Tudo isso com a comicidade histriônica do choro
descaradamente falso da mulher, que contrasta com o ar pesadamente utilitário e
cobiçoso de Zampanò mas ao qual se soma a alegria ingênua e algo primitiva da
própria Gelsomina.
Com o "louco" |
Para além de qualquer representação
crítica ou mesmo irônica – mesmo supondo, por exemplo, que a mulher sequer seja
mãe das crianças, e que aquilo seja um comércio já corriqueiro para ela –, há
no cunho tão acentuadamente grotesco
dessa sequência uma espécie de princípio poético de composição.
Pois o grotesco, aí, nasce de um
sentimento de paradoxo que se forja na mistura de tons incompatíveis: o tom cômico da superfície e o tom trágico
latente e mesmo assim tremendamente pulsante, na medida mesma, inclusive, que
já ali entrevemos o destino de Gelsomina; na medida em que o que vemos ali – a
entrega de uma segunda filha (ou, que seja, pessoa)
para o mesmo carrasco da primeira –, no âmbito, note-se bem, de uma cenografia
que afinal de contas simula o real, deveria
ser radicalmente avesso a qualquer comicidade.
A meu ver, nessa sequência se
define o tom predominante da prosa e da poesia – ou da prosa poética – de La strada: a estranheza.
III
E sem dúvida que há um tanto de estranheza
no olhar de Gelsomina. Em si mesma, a personagem é um compósito estranho.
A matriz de Gelsomina é claramente chapliniana.
Há também, é claro, sua relação mais direta com o clown (que Aline Duenha explorou em sua bela fala no mesmo evento),
mas diversos elementos explicitam a matriz-homenagem específica: o andar, o
cabelo curto, vários trejeitos, o quase-chapéu coco que ela recebe de Zampanò...
E é útil compará-la com essa matriz, até porque em Chaplin, e mais
especificamente em Carlitos, existe esse dado igualmente fundamental em Gelsomina
que é a aliança de elementos cômicos e dramáticos permeada, ou melhor, selada por um sentido marcadamente social, já que se tratam, ambos, de
figuras radicalmente alijadas de quaisquer benesses sociais: um pela pobreza e
outra não só por isso como pela escravidão.
Carlitos é, de certa forma, a
personificação da inocência reencarnada no adulto. Sua carência e sua
infantilidade são tão extremas, e suas demandas tão básicas – basicamente,
subsistência e afeto –, que não podemos vê-lo senão como uma criança crescida.
O que há de subliminarmente mais tocante na foto do Vagabundo com o menino e o
cachorro é que os três por assim dizer se equivalem.
Gelsomina é diferente. A
infantilidade de Gelsomina é muito mais impura,
seu olhar não emana apenas carência de um afeto pueril, que pudesse ser suprido
por uma criança ou um cachorro. Gilsemina tem sede da vida, e seu olhar exprime
não só inocência ou carência como desejo.
E seus atos o confirmam, seja na tortuosa fidelidade a Zampanò seja no amor
mais pleno que emerge mas não se consuma com o acrobata (o “louco”, como que sua
alma gêmea no filme). E seu desejo é também anseio de reconhecimento: vide seus trejeitos e seus olhares
pedindo/simulando aplausos.
Desprezada por Zampanò |
Elementos como esses impedem que
vejamos Gelsomina apenas como uma criança crescida. O elemento ao mesmo tempo
latente e pulsantemente adulto de sua
personalidade – como latente e pulsante
é, desde o início, a tragédia de seu destino – torna seu olhar um pouco menos
afeiçoável, ou pelo menos não tão imediatamente
afeiçoável quanto o de Carlitos.
Em minha explanação oral, inquiri a
plateia a esse respeito, e, como já previa, fui contradito, por uma ou duas
senhoras e talvez um senhor, que afirmaram (ou esboçaram o gesto de afirmar)
ter sentido uma empatia imediata com Gelsomina. Essa recepção simultaneamente
estética e empática, no entanto, a meu ver só se estabelece de um ponto de
vista superior à da teia diegética e significacional em que Fellini quer
enredar o leitor, no sentido de que é um ponto de vista que não toma para si a demanda desejante que é Gelsomina. Um
ponto de vista, em suma, maternal ou paternal – ou, em todo caso, dotado de um sentimento
que se sobreleva ao olhar e à carência da personagem. Mais que empatia ou
mesmo reconhecimento aristotélico,
esse ponto de vista talvez comporte uma piedade
subsunsora.
E tudo em Gelsomina, de seu olhar a
seu destino, clama contra qualquer subsunção. O que Gelsomina quer é nada menos
que isso a que chamamos realização, e
nada, nela, pode nos constranger mais do que isso: no fato dela querer de forma
tão adulta mas agir de forma mais
tola que uma criança. E no fato de seu olhar já exprimir esse estado, essa sina ou o que seja, de um adulto que não consegue deixar de ser criança. É na percepção dessa formação incompleta, que não é o estado
de graça da infância eterna do Vagabundo, que emerge toda a estranheza da “inocência”
de Gelsomina: essa inocência é, sim, um atributo seu, mas o que ela tem de
sublime não a purga do que tem de toleima. Uma toleima, para falar com todas as
letras, que às vezes irrita.
Vendo o louco pela primeira vez |
E nisso mesmo, justamente nisso, se
vislumbra a grandeza do humanismo e da poesia – do humanismo poético, ou a
poesia humanista – de Fellini em La
strada. Pois o olhar com que ele nos defronta não tem a inocência fácil das
crianças, mas, com tudo o que ainda traz dessa inocência, a contraditoriedade
pulsante da vida adulta, algo estranha e grotescamente sublimada em tudo o que
vemos cristalizado e vivificado nos olhos de Giulietta Masina. O desafio com que Fellini nos defronta é,
portanto, muito maior: o de olhar e aceitar alguém na constrangedora premência
de suas demandas.
E como esse alguém e essa premência
– Gelsomina e seu olhar – particamente se derramam sobre tudo no filme, sem
dúvida que eles constituem peças-chaves, senão a peça-chave, na intenção humanista que tão claramente informa La strada: a intenção de trazer à tona o
valor do humano em tempos degradados como os do pós-guerra italiano, e dos quais
Zampanò se faz o representante maior. E é esse “derramamento” empático, que
pressupõe do espectador o aprendizado de amar
Gelsomina, que permite a esse mesmo espectador aceitar como algo premente
de um anseio humano de alguma forma válido, e não como um brado hipócrita, essa
outra cena fortemente paradoxal que é o discurso de Zampanò recusando-se a
abrir mão de sua liberdade por ter matado (digamos, quase acidentalmente) o acrobata.
De certa forma o olhar de Gelsomina
já comporta esse paradoxo. Sob ele, no entanto, pulsa a, ingênua ou não, mas
certamente prosaíssima – ou poeticamente
prosaica – profissão de fé do cinema felliniano, e que se erige na
confluência de seus laivos cristãos e anarquistas: a confiança acerca de alguma pureza ainda na mais torpe e
contraditória humanidade. Como numa depuração de si mesmo, Fellini faz Gelsomina
carregar – e espalhar – em seu olhar essa confiança.
Muito bom Ravel, boa repercussão!! abraços e mais uma vez obrigado por sua participação!
ResponderExcluirAbraço, Marcus! Sou eu quem agradeço!
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