VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Rap, rock, compromisso



Juro que um dia desses eu escrevo sobre, sei lá, Freud, Nietzsche ou Marx (ou os três juntos), mas por enquanto vou ficando no Holandês Voador. Não apenas porque nosso capitão George me intimou a escrever sobre a noite skate-rap do último sábado como porque isso é uma obrigação moral, cultural e social. O fato de o George acolher em sua nau tormentosa manifestações que extrapolam o universo do rock é algo que acrescenta ainda mais grandeza e importância ao templo (ou antro, que seja, porque todo templo é também um antro, a maioria apenas esconde isso) da cultura underground de Campão que está se tornando o Holandês.

Mesmo porque a cultura Hip-Hop tem muito a ensinar aos roqueiros: em união, atitude e compromisso. Quantas letras de rock têm a consistência existencial e social das letras de rap? Quantos rolês de rock incorporam sem vexame a atitude humanitária, pedindo (não exigindo) um quilo de alimento como parte da entrada? E quantos rolês de rock têm o afluxo de gente e são pautados pelo respeito mútuo, pela atitude de diálogo e acolhimento como o desse sábado? 

Uma atitude que extrapola a sociabilidade e ecoa na própria arte: enquanto o Clip reconhecia um sampler do Led no começo de uma música, um rapper lá fora se declarava roqueiro fazendo um elogio apaixonado dos Raimundos (que pra muita gente foi a porta de entrada do rock nos anos 90; o primeiro CD que comprei, mesmo – tenho-o até hoje –, foi o do primeiro disco dos Raimundos).

Num show de rap não se poga como num de rock. No máximo, balança-se o corpo enquanto se ouve as mensagens que vêm lá de cima, às vezes de uma fileira de rappers, numa diversidade e, ao mesmo tempo, unidade de pensamento que extrapolam completamente os conceitos de banda, líder, vocalista etc. Quando se abre uma roda, é prás impressionantes danças de break, que um roqueiro pode desprezar mas dificilmente também não inveja. Mas o vigor tem muitas formas, e o mental, o ideológico, é o mais difícil de manter, principalmente quando se assume o compromisso de fazer dele um caminho, ou seja, quando ele se torna atitude, e nisso a rapaziada do rap dá show de bola.

Não vou sugerir um placar, não é isso que importa. O rock é um gênero que não só  se segmentou como se enriqueceu muito, processos que são duas faces da mesma moeda; e quem tiver dúvidas sobre minha devoção por ele, veja aqui o conjunto dos meus textos sobre o Holandês Voador. O que não impede que a união e o compromisso da galera do rap tenha algo a dizer aos roqueiros.

E, principalmente, que o Holandês Voador se torne cada vez mais um celeiro de novas ideias e formas musicais, alimentadas pelo rock, pelo rap e muitas outras coisas. Reformulei o parágrafo anterior e acrescentei este pra deixar claro que concordo com o que disse o Anônimo em seu comentário a este post: as polarizações não servem pra nada.

Mas é fato que, enquanto isso...

Nem os loucos entendem

Pirou, brother?
Ou é só dinheiro?
Ou é ironia, quem sabe?...
Ou talvez só os loucos não entendam, ou o contrário, dependendo do sentido que se dê à palavra “louco”.  Que o RPM, que sempre foi uma papagaiada (tanto que, suponho, “Rádio Pirata” nunca tocou no Holandês), protagonize o vexame do qual se queixa Regis Tadeu (cuja posição no showbusiness, aliás, me poupo de discutir) nesse texto, não chega a surpreender, embora o tamanho do vexame realmente assuste... Mas que Herbert Vianna se preste a cantar aquele jinglezinho ridículo, do qual não quero me lembrar, daquele canal de televisão escroto, com os olhos fechados e os punhos cerrados ou olhando pro céu, como se estivesse entoando a música do Paraíso da qual falava Dante... Meu Deus, meus santos, meus demônios... Herbert Vianna?!

E Tom Zé se prestando a um papelão num comercial da Coca-Cola, e querendo que engulamos isso em sua página do face com a maior naturalidade do mundo, como se a necessidade de gravar seus discos justificasse trair a essência do que eles dizem...

Tudo bem que há uma dialética nisso tudo. O próprio Chorão fazia coro ao plim-plim da Rede Olho, mas duvido que um Marcelo Camelo, que tomou uma cabeçada do mesmo Chorão (vou evitar trocadilhos a respeito) por ter ousado criticar a postura comercial do Brown Jr., duvido que Marcelo, eu dizia, já fez algo como o que, segundo contava o Johnny santista ali perto do Holandês, fizeram Chorão e outro Brown, o Mano, distribuindo trezentos ingressos para um show caro entre a rapaziada da periferia. Deve ser verdade, o Johnny não é do tipo que inventa histórias.

Mas nesses tempos em que as águas se aclaram, não dá pra ficar nadando de costas na raia. Em algum momento saí do Holandês e, atraído por um som envolvente, entrei em outro rolê, só pra testemunhar o acinte de uma banda da fronteira fazendo uma “crítica” ao tráfico e seus dividendos; uma “crítica” – e bota aspas nisso – que, pelo vulto desses dividendos, cantados e enumerados no palco, soava muito mais como um elogio. E cheguei à conclusão de que é preciso escolher: ou se é do contra (não vou dizer underground) ou não se é. Os maus diabos se pintam mas não podem se esconder: eles se chamam poder, exploração, capitalismo. Os bons se chamam rock, rap, música, arte, vida. Eles se misturam, isso é inevitável, mas também nos puxam pra lados diferentes.

Vida longa ao Holandês Voador. Vida longa ao rap, ao rock e à atitude que pode ser até pose, mas é também compromisso.

Cedo demais, mano

Ouça Tom Zé, não tome Coca-Cola:
Parque Industrial
Cafuas, guetos e santuários

E ouça Paralamas, não se espoje na lama da Globo:
Dos restos
Bang Bang

"Pra essa nova moral oportunista
Eu me viro e digo não"
(Herbert Vianna)

P.S. - Já ia esquecendo de dizer: "Hip Hop (ou rap) é compromisso" foi uma das frases que eu consegui guardar da cantação de sábado.

5 comentários:

  1. a verdade é que quem vive exclusivamente de ídolos são alienados. ninguém é perfeito e todos precisam sobreviver. julgar o trabalho de um músico só por causa de uma porcaria de um comercial é digno de quem simplesmente não sabe o que é rock no brasil: antes de tudo é sobreviver.

    sobreviver sem receber cachê, sobreviver aguentando esclarecidos comparando seu som a algo que tem uma proposta completamente diferente, porque simplesmente não faz idéia de o que significa um trabalho artístico, e acha que isso só se reduz à sua própria idéia maniqueísta e distorcida do que deveria ser uma música ou uma banda.

    sobreviver comprando instrumentos caros e sem qualidade, sobreviver com seu gosto e tentar não ser incomodado por isso, sobreviver a ser a mão de obra mais barata em qualquer festa, e a única que arca com seus prejuízos se ela falhar, e assim vai.

    dignidade de verdade é viver do seu trabalho sem ter de explorar ninguém com isso. grande merda é um comercial de coca-cola: ideologia de verdade não se faz com ídolos/heróis, mas sim com o trabalho de formiguinha de cada dia, fazendo o seu para mudar as coisas sempre quando você pode e encarando a realidade. com conscientização, sem messianismos, sem querer se achar superior ao outro, muito menos passar a mensagem de que o rock precisa aprender o que é crítica social: ele nasceu disso e se diluiu com o tempo, assim como acontece atualmente com o rap.

    antes de dizer que um estilo musical tem de ensinar ao outro, lembre-se do contexto geral: ambos são músicos, e compartilham dos mesmos problemas relativos a essa atividade no brasil.

    ambos tem de encarar a mesma realidade que é o cenário independente brasileiro. penso que muita gente deveria parar de fazer polarizações e aprender que todos os músicos e artistas estão na mesma situação, em maior ou menor grau.

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  2. Anônimo, respeito suas opiniões. O que você diz, na minha opinião, tem muito de verdade, principalmente no que diz respeito aos ídolos e heróis. Mas o fato é que para muita gente eles existem. Para mim eles não são isso, mas ainda são referências. E o que eu falei é de casos extremos. Acima, aliás, abaixo da Globo e da Coca-Cola há poucas entidades mais repulsivas. Artistas fazem propagandas o tempo todo, isso é natural e inevitável, mas eu falei de contradições flagrantes. Outra coisa: eu não estou falando de artistas pobres, muito pelo contrário. E acho que um estilo e seu universo cultural e social tem coisas a ensinar a outros, sim, tanto em termos ideológicos quanto musicais. Minha ideia não foi fazer polarizações, muito pelo contrário, mas se não se pode comparar nada com nada sob pena de se parecer injusto o tempo inteiro ou medo de posar de superior, chega-se ao ponto de não se poder dizer nada. E, no entanto, eu digo apenas minha opinião, e, embora a sustente, não pretendo dizer "a verdade". Aliás, eu ficaria feliz se você assinasse seus comentário, você que pensa tão bem, e, salvo engano, possui um blog excelente. Abraços democráticos e musicais.

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  3. Grande Ravel. Cara, você tem muito bons textos, e tento sempre voltar a seus comentários, em especial a saga que você está criando contando histórias do Holandês. Isso um dia pode dar livro...

    Um abraço e sempre que puder estarei lendo.
    Até mais.

    Gustavo Mustache.

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  4. puta q úu´pario muito bom, a tempos vi um blog tão quanto esse fio ai é panki em tio

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  5. Puxa, Fabio, tirando o "tio", muito obrigado!

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