VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Ó pá, mas esse gajo é bom à b'Eça!

Como machadiano, bom ou mau mas em todo caso escolado e diplomado (eis, finalmente, uma boa chance de fazer propaganda de meu livro sobre Machado de Assis), é com muita vergonha que publico este post, não sobre Machado, mas sobre um autor que "nós machadianos" costumamos opor, e quase sempre desfavoralmente, ao escritor carioca, como se essa oposição iluminasse muito as qualidades deste.

E é muito envergonhado que confesso que só muito recentemente comecei a me dedicar sistematicamente à leitura das obras de Eça de Queirós, de quem, há alguns meses, eu só havia lido A cidade e as serras. Lido e apreciado muito, mas não a ponto de me motivar a ler os romances maiores, que eu sempre havia tomado por meros derivados do naturalismo de Zola. Se fosse o caso de um derivado, oras bolas, melhor ler um brasileiro: um Adolfo Caminha, um Aluísio Azevedo...

Foi uma boa conversa com Paulo Franchetti na Unicamp que me levou a ler a própria obra-prima naturalista (Franchetti, aliás, lhe recusa esse rótulo) de Eça, O primo Basílio, o mesmo livro a que o próprio Machado dedicou uma crítica conhecida e, bem medidas as palavras, escandalosamente injusta. Um escândalo bem maior que o então autor de poemas e romances crepuscularmente românticos tentou apontar no livro de Eça, com seu suposto apego a detalhes sórdidos e desnecessários.

Ao contrário do que escreveu o "jovem Machado", tudo ou quase em tudo em Eça atende a um princípio de precisão descritiva, narrativa e estilística. Quem quer que leia seus romances com cuidado reconhecerá uma inteligência viva e uma sensibilidade finamente fenomenológica (semelhante, aliás, à dos grandes romances de Machado) em ação, precisa até mesmo nas metáforas de que se vale para caracterizar situações e personagens.

E tudo, ao mesmo tempo, muito distante do cientificismo zoliano. O próprio Basílio, um perfeito crápula, por mais que a lente do escritor o devasse em sua sordidez, dificilmente não angariará a empatia e mesmo, por vezes, a simpatia do leitor despido de preconceitos, por exemplo no famoso episódio da "sensação nova" que, ajoelhado entre as pernas de Luísa, ele "ensina" à amante: porque, mesmo de enlace com o desejo de posse, há aí algo que a própria obra de Eça (como a de Machado) transpira, e que, transmutada em vigor artístico, faz parte de sua grandeza: o amor pelas mulheres e pela vida.

Mas não vou entrar em detalhes; deixo isso para um artigo futuro. Depois d'O primo Basílio, li O mandarim e estou lendo agora Os Maias, romance volumoso do qual, como me informou meu amigo Sebastião, Luiz Fernando Carvalho realizou uma minissérie televisiva. Pelo que conheço da obra de Carvalho, suponho que se trate de um bom trabalho, mas não sei se ele tentou e, nesse caso, conseguiu recriar a fineza e a sensibilidade do episódio que conto a seguir, e com cujo comentário encerro este post.

Trata-se de um pequeno clímax dramático - na verdade trágico - ainda no início do livro. Depois de anos sem rever o filho, com quem rompera devido a um casamento com o qual não concordava, o pai, Afonso Maia, recebe-o na residência rural da família. Desesperado, Pedro anuncia que a esposa fugira com um italiano, levando consigo a primeira filha do casal. Afonso acolhe o filho, alojando-no em seu antigo quarto, e tenta vigiá-lo, certamente já temendo o pior, que não tarda a se consumar: Pedro se suicida, deixando para o pai apenas um bilhete e o filho pequeno, Carlos Eduardo (pelo visto o verdadeiro protagonista do romance).

O que poderia ser apenas um dramalhão romântico ganha outros acentos e sentidos graças a uma das características geralmente mais censuradas na prosa de Eça: o apego a detalhes aparentemente insignificantes, tratados com requintes de um descritivismo parnasiano. É a descrição (e narração) dos salões em que, atordoados, Afonso e criados se movem; do quarto de Pedro, que o pai, a despeito dos protestos do filho, insiste em mandar arrumar; do silêncio constrangido e funesto que habita a casa, cerrada à chuva lá fora; do próprio leito e das roupas do netinho que Afonso contempla com amor; é toda essa densidade ao mesmo tempo material e incorpórea que assinala a distância que, apesar de todo o afeto renascido nessa hora dramática - uma distância, aliás, cavada menos pelos sentimentos que pelas convenções -, separa pai e filho.

Afonso pressente perfeitamente que Pedro está prestes a fazer o pior, mas simplesmente não pode permanecer ao seu lado.

Essa sensibilidade para a solidão da vida burguesa está muito além dos clichês românticos e, mais ainda, das cartilhas naturalistas. Ela participa do olhar agudo com que Eça devassou - pelo que pude ver até agora -, muito mais que a sociedade portuguesa, as mazelas da dita civilização ocidental, ou seja, isso de que ainda nós somos herdeiros.

Em tempo
Minha vontade, ao ver as últimas notícias, é falar de algo muito mais premente que as páginas antigas, por atuais que ainda sejam: o massacre dos índios em Amambaí-MS. Só não faço isso, e apenas registro esse fato, em respeito a uma decisão: a de não fazer deste espaço um mero arquivo da barbárie. Quero, também, registrar meu apoio aos estudantes da USP, que, com todos os equívocos, reais ou supostos, também lutam por uma bandeira esquecida: a autonomia universitária. Pois se a Universidade não for um espaço de liberdade e experimentação, não pode ser nada de bom.

5 comentários:

  1. Um belo texto e um ato de justiça, eu diria!
    abraço, Paulo Franchetti

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  2. Obrigado, Franchetti. (Sendo fraco, melhor ainda, re re.) E vc tem razão, é o Pedro, não o Carlos; já corrigi.

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  3. Belo texto , Ravel! Deu vontade de ler o Eça...
    Abraço!

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  4. Oi, Ana. Obrigado. Leia sim. Eu tinha um baita preconceito. Continuo lendo Os Maias, há algumas passagens quase proustianas; lembra um pouco o Th. Mann, também.

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  5. Também recebi, por e-mail, o comentário e a dica, qe seguem abaixo, da amiga Daniela Portela. Obrigado, Dani!

    Do Primo Basílio, gosto dos diminutivos que o Eça usa para caracterizar as coisas com as quais a Luiza se preocupa: enfeitizitos, malinha do Jorge, etc.... é a percepção mais cruel do universo mesquinho da burguesia e suas coisinhas do cotidiano....

    Se puder, leia as cartas do Eça.

    Abraços

    Dani

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