VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 29 de maio de 2011

Ouro em ondas (um arquivo (quase) nada crítico)


Alguns artistas têm a benévola e imodesta ambição de ser midas, ou seja, pretendem que tudo o que toquem vire ouro. O Veloso Caetano, por exemplo, algumas vezes conseguiu funcionar assim, outras nem tanto (sua versão de "Ouro de tolo", por exemplo, reduz a obra-prima de Raul a prata escaldada), principalmente desde que se tornou um sujeito - e, sim, um "artista" - de direita. Desculpe-me o Lula (o meu amigo, não o ex) por declarar essa triste verdade.

Mas, bem, Caetano, Raul, noves fora sobram os Beatles, e o milagre que os Beatles fazem é, digamos, um pouco maior: quase tudo o que gravaram dificilmente pode deixar de ser ouro, em quaisquer mãos que sejam; até aquela versão bregapop pavorosa de "Hey Jude", com sua letra, como dizem os jovens, totalmente nada a ver (e com a qual Kiko Zambianchi envergonhou uma geração inteira de roqueiros ao gravá-la), convenhamos, tem algo de uma miséria grandiosa, como que desafiando a declaração de Renato Russo de que não há beleza na miséria: "Hey Jude / Pra que chorar / Por alguém quíí / Não te ama-a-a-ahh!!!???"

Pois imaginem, então, o que uma boa orquestra de jazz-suíte "tropical" não pode fazer com os Beatles. The Beatles in Bossa Nova é um rótulo um pouco enganoso, mas pelo qual sou grato, pois definitivamente sweet jazz (sic) não é meu estilo preferido (se bem que há, de fato, alguns arranjos bem bossa nova no disco), e foi justamente esse título que me chamou a atenção. Há, certamente, coisas mais sofisticadas feitas com os Beatles, mas poucas, estou certo, com tanta qualidade sensual.

Bem, confiram. Mas, claro, certas ondas só funcionam se você o tiver o que fazer com elas (ao menos em pensamento, né não?:). 

Brazilian Tropical Orchestra plays The Beatles in Bossa Nova

"Help!", por 88 Louie Fingers Louie

Ps1: Infelizmente a faixa 09 ("Help!") está corrompida, e só toca até a metade. Se alguém porventura a tiver e quiser me ajudar a completar este post... O qual, aliás, dedico ao grande Daniel Blamires - o Grande Danbla -, o beatlemaníaco mais (literalmente) maníaco que eu conheço. E também ao Chico, que aliás compete com o Danbla.

Ps2: Para comprovar minha afirmação anterior, sobre a perenidade aurífera dos Beatles, dou como "bônus" o link para uma versão punk-ska de Help! (justo a música incompleta do disco); e se alguém não entender por que essa versão é excelente, eu explico.

Ps3: A despeito do que disse, concordo contigo, ó Grande Danbla, que Ray Charles "cantando" Let it be é inaudível!!!!!!!

Ps4: Ainda sobre Caetano e Raul, me bateu agora a suspeita de que o primeiro sempre soube da imensa superioridade do segundo sobre si, mas nunca teve coragem de declarar isso (embora já tenha puxado saco até do Paulo Ricardo). Vá me desculpando o mano Lula, mas eu não podia fazer um post totalmente acrítico, né? :)

4 comentários:

  1. Me desculpe o autor deste post, mas a letra do Kiko para Hey Jude tem tudo a ver, pois as letras dos Beatles eram mesmo bobinhas. Quanto ao brega, ele é a verdadeira expressão da cultura nacional brasileira. Você tem é vergonha de ser brasileiro e fica aí idolatrando obras oriundas dos países imperialistas! Milionário e José Rico, Roberto Carlos, Amado Batista, e etc., são as genuínas produções artísticas da terra brasilis, são a nossa contribuição original para a cultura universal. The Beatles? Coisa de adolescentes sob a forte influência da libido estourando por todos os poros nessa época da juventude.

    Assinado: Goiano De Verdade

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  2. Valeu, Goiano. Críticas às críticas são sempre bem vindas, e este post foi mais uma provocação do que qualquer coisa. Na verdade, penso como o Raul, que Genival Lacerda tem tudo a ver com Elvis e Jerry Lee Lewis. E também que faltou um acento localista no seu comentário. Vc podia ter lembrado, por exemplo, o Zezé di Camargo, um excelente compositor breganejo. Mas veja que a B.T.O. não é exatamente uma banda estrangeira.
    Um abraço,
    Ravel.

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  3. Caetano sempre fez um silêncio mais ou menos estratégico sobre um outro artista que ele sabia ser maior que ele: Tom Zé. Mas ainda acho que ele acertou mais que errou em termos de música. Fora da música, o problema dele é semelhante ao de uma entrevista, por exemplo, com Pelé - a grandeza deste cabia toda dentro de um campo de futebol. Fora do campo qualquer taxista de São Paulo aguenta um debate com Pelé. Quem entrevista Caetano sabe que pode sempre perguntar sobre qualquer polêmica e arranjar uma manchete para seu caderno 2. Então tome perguntas sobre as eleições no Peru, a guerra na Líbia, a greve dos bombeiros e tome Caetano falando bobagem sobre tudo isso.

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  4. Oi, Paulo. Obrigado pelo comentário.
    Pois é, na verdade não sei se tem sentido dizer que Caetano é maior ou menor que Raul, pois são grandezas diferentes. Foi, de fato, uma provocação, digamos, de quem ama Raul e ora admira, ora despreza Caetano. Agora, com Tom Zé, o único tropicalista resistente, o cotejo é inevitável, tanto mais que ele é um exemplo, a meu ver, de como a insistência em pensar as coisas a sério é uma fonte de criação artística autêntica e de qualidade.
    Mas você vai ao cerne da questão. E o que me indispõe com o Caetano é mesmo sua política de poder discursivo, com os julgamentos e panteões que ela institui sob a égide de um pretenso inspirado. E as mesquinharias que participam dela, com esses reconhecimentos e desconhecimentos estratégicos. O disco arranjado por Jards Macalé, por exemplo. E essa ideologia demiúrgica-individualista tem reflexos estéticos: “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”, um verso (realmente) bonito e (mais ainda) cretino como esse.
    E veja que coincidência: ontem ouvi, pela primeira vez, a segunda versão de “Eu sou egoísta” (no disco “Metrô linha 743”), na qual Raul explicita a citação final do Caetano (“por que não?, por que não?”), emendando com outros versos de “Alegria, alegria”. Mas o individualismo do Raul, além de ser (como o de Caetano, é verdade) um individualismo panteísta, é um individualismo em convulsão (“o auge do meu egoísmo é querer ajudar”). A grandeza de Raul tem a ver com se assumir contraditório, as pequenezas de Caetano com tentar ocultar isso.
    Abraço,
    Ravel.

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