VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O estranho intestino


Reassisti ontem, em parte - até onde minha paciência permitiu -, a primeira obra-prima de ficção científica de Ridley Scott, Alien (o oitavo passageiro, segundo o subtítulo brasileiro), anterior em três anos ao mais denso e humano Blade Runner. Mas a impaciência não teve a ver apenas com os méritos do filme, que não são poucos. Ocorre que só depois que o arquivo começou a rodar descobri que se tratava de uma cópia dublada em português, e, além disso, comentada (em inglês) pelo diretor. A meia solução foi reduzir o som ao mínimo, contentando-me em compreender os diálogos por meio das legendas, também em português.

No entanto, essa perda irreparável também me obrigou a um providencial distanciamento bretchiano; e o que esse distanciamento me permitiu perceber com toda a clareza é que Alien é um filme que envelheceu. Sem dúvida, a quase supressão da opressiva trilha sonora, aliada à perda das vozes originais, ajudou a atenuar o suspense e o impacto dramático das cenas iniciais; mas, com isso, o primado das imagens e dos efeitos especiais tornou-se ainda maior, e é fácil perceber que exatamente na dependência deles o filme se torna - justamente a partir de sua intensificação dramática, com a aparição do monstro - quase enfadonho, passados tantos monstros mais sofisticados e tenebrosos que se seguiram ao seu (em boa parte, aliás, estimulados por ele). O que é uma pena, porque, de um ponto de vista imanente ao filme, seus efeitos e sua cenografia são de qualidade ímpar, inclusive superando quaisquer funções meramente técnicas e sensoriais e participando de sua construção propriamente artística.

Vide, por exemplo, a sequência inicial, na qual a câmera percorre o interior a nave com um vagar - dir-se-ia uma atenção - que visa, muito mais do que ostentar a boa aplicação do orçamento, criar uma espécie de familiaridade intestina do espectador com o ambiente. (Não é a primeira vez que uso, com a ambiguidade que usarei aqui, a palavra intestino, e me permito remeter à primeira dessas vezes: http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/034/RAVEL_PAZ.pdf). Penso que essa minha impressão é confirmada pela cena que fecha a sequência, uma tomada com efeitos de luz e uma orquestração maquínica que fazem lembrar uma espécie de gênese, ou, melhor ainda, de desabrochar, pois, plasticamente, a maquinaria em questão lembra mesmo uma flor. Maquinaria esta que abriga os corpos inanimados dos tripulantes da gigantesca Nostromo (nome bastante sugestivo, para quem conhece o livro de Conrad, ainda mais em se tratando de uma nave comercial), e da qual logo vemos um deles - justamente o que será o primeiro hospedeiro do monstro - se erguer parcialmente, desentorpecendo-se aos poucos e com igual lentidão à da câmera, selando uma intenção e um processo sinestésicos que são também significantes.

Pois é evidente que toda a construção significacional do filme se pauta nessa entranhização de corpos estranhos, e que a estranheza desses corpos - sobretudo, é claro, do mais aterrador deles - tem a ver com certa indefinição entre as condições de ser e de coisa. Aliás, a nave, ou o computador que a comanda ou orienta, é chamado de "Mãe" pelos tripulantes. Momento intermediário entre a abertura e a assunção do monstro, a sequência da exploração da nave alienígena da qual ele advirá também cristaliza essa ambiguidade. Vista de fora, essa nave - aparentemente abatida ou abandonada em um planeta semelhante a Saturno - lembra um gigantesco ser caído (os próprios astronautas a definem como indescritível), e por dentro, por vezes, temos a impressão de distinguir o esqueleto de um organismo biológico. Não é o caso, mas no desenrolar da sequência nos depararemos com duas espécies de organismos, e do primeiro deles - o tripulante morto, com características humanas mas muito maior, e que servira de hospedeiro a um monstro - um dos astronautas dirá que "parece que cresceu da cadeira".

A outra espécie de organismo presente na nave são justamente os ovos botados, ao que tudo indica, pelo monstro oriundo das entranhas do tripulante morto (não podemos chamá-lo de alienígena, pois não é impossível que aquele seja seu planeta de origem), e entre os quais o oficial Kane terá a infelicidade de encontrar o "oitavo passageiro" de sua própria nave. Ou melhor, não propriamente ele mas uma espécie de mãe, pai, ou, seja como for, primeiro hospedeiro seu, e que precisará encontrar - aliás, encontrará em Kane - um hospedeiro para abrigá-lo até o amadurecimento de sua forma final: o bichinho hoje já não tão aterrador que vemos surgir lá pelos 50 minutos do filme.

Note-se que essa complexidade procriativa encontra correspondência na complexidade maquínica que não só compõe visualmente a diegese do filme como configura sua espécie de espacialidade viva, com a qual os personagens interagem o tempo todo; como o próprio Alien se afigura muito claramente a uma máquina, com sua cabeça interna retrátil e seu sangue semelhante a "ácido molecular" que chega a corroer a maquinaria da nave.

O que me interessa nisso tudo é sugerir a espécie de lugar de intersecção que o conceito de máquina assume aí. Para ir direto ao ponto, creio que a atenção a esse dado permite uma leitura que desloque um pouco a interpretação usual do Alien como figuração de um Outro extremo ou absoluto, um Inteiramente Outro de assimilação impossível pelos padrões da sociabilidade humana. Sem dúvida que essa leitura é pertinente e valiosa; seus termos exigem, inclusive, a análise das relações - de classe, gênero e etnia - que, antes mesmo do abalo antropológico que o Alien produzirá na Nostromo, já grassam dentro dela.

No entanto, também no que tange à forma como o Alien espelha essas relações é um dado relevante que sua entranhização se produza tão intimamente ligada a esse terreno partilhado que é o das experiências e/ou existências maquínicas. Esse terreno institui uma esfera em si mesma marcada pela estranheza, a reificação etc., mas que, enfim, é também a esfera de uma espécie de solidariedade orgânica, ou maquínico-orgânica.

Nesse sentido, o que se entrevê em Alien é algo semelhante ao germe de uma utopia, de um mundo de pertencimento mútuo entre os seres; um mundo, naturalmente, que se esboça sob o signo do feminino, pois é a imagística (tão biotecnológica quanto arquetípica) das entranhas vivas, por onde perambulam seres vivos, que congrega os seres e as coisas (na própria Nostromo, além da Mãe e da flor-dormitório, vemos por vezes imagens que lembram entranhas).

Mas é claro que essa utopia é, já em sua raiz, corrompida por um espírito infernal que a transforma em ameaça distópica. Isso se cristaliza principalmente na própria figura do Alien, máquina andrógina, unidade monstruosa do masculino com o feminino enformada pelo aparato biomaquínico, com seu falo dentado e assassino que emerge de uma boca-vulva igualmente dentada. Não é à toa que será uma personagem feminina tornada aparato bélico a oponente (e contrapartida) humana do monstro.

Isso tudo reflete contradições básicas do cinema de ação hollywoodiano, mas é preciso analisar essas contradições de um ponto de vista que leve em conta o fundamento das relações sociais, ou seja, o trabalho; e, nesse sentido, a inversão da práxis humana em fetichismo biotecnológico é um dado signfiicativo. O que mais se assemelha ao trabalho produtivo, na Nostromo (em sua condição de nave comercial, quase um símbolo da expansão da sociedade de consumo a níveis interplanetários), se reduz à manutenção ou reparo da nave, ou então ganha uma espécie de caráter mágico, por exemplo nos artefatos criados para deter o monstro quase imediatamente após sua aparição. O resto (inclusive fartas refeições) a Mãe máquina suprirá, com exceção, é claro, da proteção diante do que ameaça destruir seus filhos e suas próprias entranhas. Como se vê, este é mesmo um mundo em que os seres, humanos ou assemelhados, parecem nascer das cadeiras, e não o contrário. A mesma ânsia e fetichista que pesa sobre o feminino pesa sobre o trabalho.

Enfim, corrompido em fetichismo biotecnológico, o cerne potencialmente utópico ou a antevisão panteísta de Alien - a entranhada unidade de seres e coisas - redundam em retorno monstruoso do recalcado, e com tal virulência que sua forma maquínico-intrumental - leia-se belicosa - incide diretamente sobre a própria imagem do feminino (ao mesmo tempo que se afirma, nisso, que não se pode prescindir dele, o feminino, que ao mesmo tempo legitima o aparato, e assim por diante). A face bela e endurecida da tenente Ripley é um contraponto exato ao rosto frágil e humano - o mais humano do filme - de Kane, e entre eles, mediando-os, há o rosto radicalmente desumano (o prolongado close da primeira aparição reafirma isso) do monstro. Ou não tão radicalmente assim?

Sem ser a recusa da condição maquínica, no entanto, o filme de Ridley Scott deixa entrever, nessa própria condição, um germe de esperança de ir além dela. Mas para que essa semente benigna viessa à tona, seria preciso que, um pouco como a baba ácida do Alien, ela furasse as camadas de nossa constituição, práticas e produtos maquínico-instrumentais para trazer à tona uma face, não direi mais humana, mas mais benévola que a do monstro que vive em nossas entranhas.

Em outros termos, seria preciso que Alien fosse um filme que se desconstruísse, ao invés de se reiterar em sequências cada vez mais zelosas de sua engenharia biotecnomonstruosa. E agora, quando Scott anuncia um novo produto fílmico, segundo dizem inicialmente planejado para dar continuidade à saga do monstro, é inevitável a curiosidade, ainda mais diante de seu nome (Prometheus), quanto a saber por quais caminhos ele irá aquém e/ou além do humano.

Citei:

Theodor-W Adorno. "Engagement", em Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.

11 comentários:

  1. kkk, vc tem de falar tb que o Alien é o contrário do elenco. Dá uma análise de teoria teatral. Ele devora o elenco. Quando ele chega, ele é o contrário do elenco. Tínhamos que fazer a peça brechtiana Alien com filtro, prendendo o aline numa quarta parede.
    Abs!

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  2. Temos que fazer a continuação do alien, a nave-espaço do palco tendo só o alien e alienando o elenco. Será que o alien somos nós? Afinal, nós espectadores somos os nonos passageiros, os que dão uma bialiana "espiadinha" no horror.

    Abs!

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  3. obrigado pelo comentário! vou guardar na memória e no coração como o primeiro do blog. no mais, a ideia do alien (ou a aline, como você escreveu :)) na quarta parede é boa, desde que não fosse no estilo fura dels baus, é claro... embora a platéia burguesa paulistana bem que merecesse, re re.

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  4. Sempre pensei no Alien como uma reiteração filtrada pelos códigos Hithccockianos do medo do exótico estrangeiro do Drácula de Bram Stoker com o medo da ciência prometeica do Frankenstein de Shelley. O que ele trazia de novidade? O aparato tecnológico de Hollywood, que envelhece cada vez mais rápido...

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  5. Paulo, obrigado pelo comentário.
    Bem, eu tentei ver no aparato hollywoodiano uma dimensão significante que indicializaria demandas para além da cultura do medo e da guerra, embora terminasse por reiterá-la. Mas é claro que é só uma possibilidade de leitura, que precisaria ser analisada mais detidamente. A verdade é que não consegui nem quero mais tentar rever o filme inteiro...

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  6. Ravel: como é a quarta parede no Fura del Baus? Eu estava pensando em Carmem com Filtro, do Gerald Thomas.

    abs!

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  7. Salve, meu luciferiano leitor (no melhor sentido que você possa atribuir a isso, sem máscaras metafísicas, re re). Bem, a questão é que o Fura não tem quarta parede (a não ser que se conceba a platéia dentro delas), mas se tivesse seria mais ou menos como a Nostromo do Alien, ou como aquele filme, pague para entrar e reze para sair, re re. Ou um big brother digno da classe média culta, apática e inconscientemente sedenta de sangue que é o grosso das platéias paulistanas. Mas acho que escrevo isso ressentido de morar onde não há teatro...

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  8. Oi, Ravel. Tb moro onde não há teatro. Aliás, até onde o teatro mora há pouco teatro: a TV comeu o teatro. Abs!

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  9. Ravel, fiz um grande comentário sobre esse seu post, mas o canalha do publicador me boicotou e o comentário se perdeu... Lamento.

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  10. Oi, Antônio. É uma pena, mesmo. Mas como sou eu o canalha do publicador, posso garantir que o que houve foi uma falha técnica. Se quiser reescrever ou resumir seu comentário e me mandar por e-mail, posso publicá-lo eu mesmo. Abraços!

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