Este blog já está há tanto tempo parado que só mesmo em caso de incêndio pra dar sinal de vida. E olha que o Cólera passou como um furacão por Campo Grande e eu não me animei a celebrar o fato aqui. Mas ver a Burning Universe novamente, depois de mais de dois anos, foi o estopim pra que eu finalmente escrevesse sobre essa banda que há mais de uma década faz o Caos e o Cosmos arderem em Big Field; tanto que é de se espantar que este vasto pasto ainda esteja de pé (ou não, e nós é que nos iludimos dentro da Matrix).
Vale notar que, na noite em que a revi, a Burning tocou na sequência de uma banda – a excelente Atropelo, de Rio Brilhante – que também impressiona pela potência sonora e pela performance, com uma teatralidade radical à base de maquinários industriais e pirotecnias agressivas. Confesso que temi que, depois disso, a Burning não fosse dar conta do recado, mas me enganei redondamente: a banda campograndense não só fez uma de suas apresentações mais impactantes como deixou claro que sua mistura de reflexão, agressividade e primor musical está cada vez melhor e mais explosiva.
Com um EP (O espectador do tempo, 2013), um CD (O esquizofrênico curado, 2015), alguns singles recentes e incontáveis shows memoráveis no currículo, a banda formada por Danilo Leal (voz e guitarra), José Roberto (guitarra), Lincoln Keiser (bateria) e, agora, Disney Filho no baixo (posto que já foi de Eziel de Oliveira e de Tomaz Leal) se define como post-hardcore, o que certamente diz muito, já que seu trabalho consiste basicamente na energia precisa e veloz do hardcore a serviço de uma sonoridade mais burilada, graças principalmente ao jogo das guitarras.
Já as letras de Danilo, se inserem na linha de reflexão social e existencial que o hardcore herda diretamente do punk, revelando o discípulo de Redson, Jello Biafra, Enrique D.D.O. e outros poetas marginais do rock underground. A alienação, a ostentação, a intolerância, a solidão e a falta de sentido de um mundo doente despontam como temas quase obsessivos em canções como “Engrenagens”, “A solução”, “Círculo vicioso”, “Congelamento global” e, com um acento intimista, “O espectador do tempo”:
As imagens cada vez mais bonitas,
Escondendo os enredos cada vez mais sujos
E não se esqueça de registrar o momento
Segurando um copo de felicidade descartável
(“Círculo vicioso”)
Quero injetar em suas veias as minhas verdades
Eu não posso aceitar que eles pensam diferente de mim
Gradativamente enlouquecendo, coletivamente
São retratos de uma humanidade em estado terminal
(“A solução”)
Você não quis ouvir ninguém
E o tempo insistiu em passar
Sem você perceber
Que a doença tomou conta de você
E é cada vez mais difícil levantar
E eu vejo em seu semblante vontade de chorar
(“O espectador do tempo”)
Uma sonoridade feroz e trampada amplifica a urgência desses versos. Enquanto Danilo despeja suas letras ácidas em berros altenados com partes cantadas perfeitamente inteligíveis, a maquinaria pesada de Lincoln e Disney se encarrega do massacre sonoro. Mas enquanto as letras expõem seus dramas vivos, o som é, mais que catártico, libertador. Visceral e explosivo mas ainda assim melódico, cheio de nuances harmônicas e variações rítmicas, o trabalho musical da Burning cumpre o que a letra de “Engrenagens” promete: a libertação efêmera (e, portanto, potencialmente viciante) proporcionada pela própria música:
Este ensaio precisa ser rápido
A vida urge
Depressa
Pegue esse arranjo e vamos dançar
Ao som dos berros daqueles que ainda têm tempo de sentir
Feche os olhos
Balance sua cabeça como se ela fosse sair de seu corpo
Aproveite enquanto essa droga faz efeito
Pois amanhã, todos nós voltaremos para dentro do relógio
A própria trituragem acústica, com a assistência do baixo furioso e poderoso, ajuda a abrir as portas da percepção “daqueles que ainda têm tempo de sentir”, e o jogo de harmonias e texturas sonoras das guitarras e das variações vocais cria um sentimento realmente cósmico: a explosão furiosa de uma psicodelia punk-hardcore. A Burning Universe faz jus a seu nome.
E também o impacto visual desse nome se plasma de diversas formas no trabalho da Burning, desde as capas fortemente conceituais – a de O espectador do tempo tematizando a alienação midiática e a de O esquizofrênico curado emulando a estética steampunk –, passando pelos elementos cinematográficos das letras até as explosões musicais dos registros e, mais ainda, das apresentações da banda: além do impacto sonoro duplicado, que em seus grandes momentos cria um clima quase transcendental, há as performances arrasadoras de Danilo, com suas caretas medonhas acompanhando os guturais e seus saltos incríveis. E como nem ele nem os outros são exatamente pequenos, é quase uma batalha titânica o que assistimos no palco.
Mas esse titanismo juvenil – quase infantil, pode-se dizer, no sentido de uma pureza primal – não se separa da sobriedade que rege o lado conceitual da banda. A batalha não é apenas contra a lei da gravidade ou os limites dos corpos com seus instrumentos, mas contra tudo o que torna essa libertação catártica não só bem-vinda como urgente. Caso se reduzissem à sonoridade potente e burilada, talvez as canções e apresentações da Burning fossem apenas mais uma peça na imensa engrenagem de vícios e compensações que a música e a cultura undeground não deixam de integrar. Mas a aposta sonoro-conceitual da banda é outra: incendiar as mentes e explodir as amarras da percepção pra libertar o ser pensante da Matrix que se multiplica em bolhas cada vez maiores.