VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 23 de novembro de 2024

O Coringa de Phillips/Phoenix e o fim da picada

 


Atenção, os spoilers começam no segundo parágrafo, e o filme vale muito a pena.

Coringa: delírio a dois (no original, Joker: folie à deux), o aparente remate da breve “franquia” de Todd Phillips (o qual, no entanto, prometeu nada menos que mais quatro ou cinco produtos, se o que eu li não era uma fake news) estava fadado a ser um filme incompreendido, e eu acho impossível que seus realizadores não soubessem disso. Por um lado, a revisão e desconstrução iconoclasta de um ícone tão celebrado da cinematografia pop contemporânea – há poucos dias, alguém muito jovem me exprimiu sua convicção de que se tratava do maior supervilão das grandes franquias de super-heróis – não poderia deixar de gerar o incômodo e a irritação que gerou. Um dos canais do Youtube mais apaixonadamente engajados nesse nicho, o da editora Pipoca e Nanquim, anunciou sua review com o subtítulo “uma decepção que dói nos ouvidos”. A ideia de decepção é bem sintomática do que ocorre aí. Já a propósito do primeiro filme, alguém – também no Youtube, talvez no mesmo canal, ou no Omelete – listava argumentos para mostrar que aquele Coringa não tinha nada a ver com o clássico inimigo do Batman, e que sua história faria mais sentido se fosse a história de um outro louco qualquer. É esse descolamento – ou, se me permitem insistir, essa desconstrução radical – que já então incomodava e agora incomoda muito mais.

Afinal, não é mesmo o fim da picada (na sequência, o primeiro e maior spoiler deste texto), conceder ao maior inimigo do Batman um lugar de protagonismo condizente com sua condição de grande supervilão – outros, menores, têm tido esse privilégio – apenas para matá-lo sem ao menos um único combate entre eles? Não seria o caso, mesmo, de questionar o sentido dessa apropriação abusiva e aparentemente desnecessária do personagem? E, no entanto, é essa desconstrução radical que dá todo ou, pelo menos, grande parte do sentido dessa sequência ou, até prova em contrário, dilogia fílmica: porque, a bem da verdade, o que se consuma no novo filme é o fato de que o Coringa vivido por Joaquin Phoenix é uma máquina desconstrutora, ao mesmo tempo minada e potencializada por um rastilho de pólvora apocalíptico. É, aliás, no encontro desses espíritos tão distintos quanto semelhantes – o desconstrutor e o apocalíptico – que os Coringa de Phillips se constituem ou buscam se constituir como obras de arte.

Mas também essa pretensão estava fadada à incompreensão. Nesse caso, o que pesa é o próprio diálogo com a cultura pop, ou melhor, sua apropriação antropofágica em um produto que, não obstante essa intenção ressignificadora, joga com os elementos dessa cultura com desenvoltura e intimidade suficientes para que a aura de “filme de arte” não o revista naturalmente. Esse jogo, no entanto, é apenas um entre outros: o start nessa máquina que só se detém quando nos conduz, de fato, ao fim da picada a que quer chegar, ao fim da picada – para além, mesmo, de qualquer piada macabra – que encena como encenação de um destino que, na alegoria que aí se erige, não é apenas de seu herói-vilão, mas, talvez, da humanidade.

Coringa não é – quem dera fosse, ou melhor, pudesse ser sem ser um filme ruim – uma apologia da anarquia ou do anarquismo, e muito menos da sublevação violenta das massas, mas um filme sobre o fim de tudo: o fim do mundo, o fim, antes de tudo, do filme, do cinema. Não por acaso, ao seu lançamento se sucede, quase imediatamente, o de Megalópole de Coppolla, que eu não vi ainda mas já sei que trata disso, talvez em menor escala, porque mais diretamente centrado na crítica ao estado atual do cinema hollywoodiano, cujo ethos antecipa, de há muito, a ascensão do trumpismo na política norte-americana. Nos Coringa de Phillips e seu parceiro de roteiro Scott Silver, a escala dessa crítica é provavelmente mais ampla, porque eles encenam a desconstrução e destruição mútua dos gêneros, e os gêneros são coisas que geram, degeneram e geram degenerescências com a mesma força proliferante. Ao jogar com gêneros ou subgêneros incompatíveis, Phillips produz uma bola de neve que arrasta consigo o impulso épico, a comicidade e a tragicidade que permeiam sua “franquia” desde o início.

A recusa em situar-se nos limites dos filmes de supervilões – e, portanto, super-heróis –, esse gênero relativamente novo (mas há, por exemplo, o Diabolik dos anos 60) que coroa a ascensão do cinismo como horizonte ético, é visível desde o primeiro filme, e desde aí em certo conluio com a espetacularização coreográfica que no Delirio a dois explode como assunção do gênero musical. Aquele gérmen de vida, da plenitude da vida, que habitava o corpo esquálido de Arthur Fleck/Joaquin Phoenix floresce, agora, sob o impulso do enlace real, breve mas intenso, que, ao contrário do delírio amoroso do primeiro filme, se consuma de fato na relação com a personagem vivida (muito bem, a meu ver) por Lady Gaga, mas só para morrer da forma mais miserável. Não tenho notícia (e gostaria de ter, se fosse o caso) de um musical – porque se trata, sim, de um musical – com um fim tão desolador. E, sim, trágico, porque não é a regra aristotélica do herói elevado que anula a tragicidade desse, no fundo, homem comum. Mais que trágico, porém, desolador: se há algum rastro da dignidade e do sentido catártico que revestem o destino da vítima sacrificial na morte de Arthur Fleck, é porque não pode deixar de haver, já que a tradição pesa imensamente nesse sentido. E tampouco se nega dignidade humana ao personagem, que no entanto se vê devorado pela indignidade da vida da qual ele é parte e que ele fomenta. Eis, talvez, a maior decepção de Delírio a dois para os batmaníacos: o glamour que se entrevia nos passos dançantes de Arthur, como que anunciando o “super” em vias de alçar voo no fim do primeiro filme, rui completamente aqui.

A forma dessa ruína não poderia ser mais sintomática: à desconstrução do musical, do supervilanismo e do super-heroísmo (notando, de passagem, que dessa vez o pequeno Bruce Wayne não é sequer mencionado) cinematográficos, soma-se ainda, em Delírio a dois, a dos chamados filmes de tribunal. Desde o primeiro filme, Coringa invoca questões éticas e morais, e não apenas sociais e psicológicas, com inegável seriedade. A fala de Arthur sobre a efetividade de sua maldade tem um peso que não descola as questões do sentido e da origem da vilania das problemáticas sociais, relacionais e psicológicas, mas coloca a questão da responsabilidade individual para além não só da empatia e da percepção ética como de qualquer diversão e diversionismo estéticos. É com toda seriedade, portanto, que Delírio a dois se vale desse gênero de pretensões tão nobres – lembre-se, por exemplo, de Fúria de Fritz Lang e O veredito de Sidney Lumet – que é o “filme de tribunal”, e, no entanto, não o faz senão para implodi-lo ou, quase literalmente, explodi-lo. A explosão algo tosca que interrompe a leitura da decisão do júri como que sublinha o quão pouco, no fim das contas, vale aquilo tudo no cômputo geral desse mundo onde se mata impunemente a rodo. No fim das contas, sequer somos informados se houve vítimas fatais, o que me parece menos uma falha de roteiro do que um desprezo proposital, não pela vida, mas pelas estatísticas, que é aquilo a que a vida parece ter se reduzido.

Na cena que fecha a sequência da fuga de Arthur, Delírio a dois se vale da licença poética típica dos musicais para fazer o personagem se deparar, pela última vez e de forma absolutamente inverossímil, com sua parceira de loucuras na escadaria que marca simbolicamente seu destino desde o primeiro filme, mas somente para conduzi-lo, realística e paradoxalmente, de volta à prisão. O “musical” se encerra sem o fim que o cenário promete, assim como a “piada” do assassino e, a seu modo, pupilo de Arthur termina com seu esgar e seu olhar parado, silenciando para sempre seu riso patológico. É o fim da piada, o fim da picada, dos sonhos e delírios de amor e justiça, social ou de qualquer tipo. No limite, do mundo, pelo menos desse mundo onde matar e morrer se tornou banal demais para que se possa extrair algum sentido da morte de quem quer que seja, culpado ou inocente. Se algo sobra, se é que sobra, é a autenticidade dos sentimentos de Arthur, mau e bom, algoz e vítima, humano e desumano como nós. É muito pouco, em todo caso, para um filme hollywoodiano. Minha impressão é que Phillips se valeu da licença propiciada pelo sucesso algo equivocado do primeiro filme para produzir um fracasso calculado, e que tê-lo realizado com esmero é seu maior sucesso. Hollywood e os cultores de suas franquias (sem aspas) precisavam e precisam disso: antes uma bomba simbólica que uma bomba real.

Para não fechar assim, apoteoticamente, permito-me contrastar a situação de Delírio a dois com a de Furiosa, prequela de Mad Max: estrada da fúria cujo fracasso nas bilheterias foi amplamente lastimado pelos cultores da franquia, e que não obstante é um filme ruim, que dilui o sentido crítico do anterior e guarda dele sobretudo o messianismo ambíguo, espetaculoso e, agora, singularmente cruel. “Feminista” ou não, George Miller se avizinha aí nitidamente do fascismo. Cirúrgico e proliferante a ponto de minar as bases do cinema como espetáculo, o aparente niilismo de Phillips me parece muito superior a isso.

Um quase pós-escrito: alguém, acho que minha filha Anita, aventou a possibilidade de que o “verdadeiro Coringa” seria o filho de Arthur que a personagem de Gaga diz trazer no ventre (o que, inclusive, inverteria e diminuiria a disparidade etária com Bruce Wayne). Não é impossível, e nesse caso talvez eu esteja redondamente enganado. Ou não. O fato é que, dado o fracasso estrondoso de Delirio a dois, dificilmente saberemos.

Agora sim, um p.s.: minha leitura, sobretudo no que tange à questão dos gêneros, é muito influenciada pela de Jacques Derrida da narrativa La folie du jour, de Maurice Blanchot, no ensaio A lei do gênero. Para quem se interessar, segue o link do texto: https://revistas.uepg.br/index.php/tel/article/download/13793/209209213291/209209224584

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