VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 30 de junho de 2012

O estranho da perversão: notas
psicanalíticas (e para além da psicanálise)
sobre o filme La Pianiste

Se é correto o teorema psicanalítico de que as mulheres experimentam sua constituição física como a consequência de uma castração, então em sua neurose elas pressentem a verdade. A mulher que se sente como uma  ferida, quando sangra, sabe mais a seu próprio respeito do que aquela que se imagina  como uma flor porque isso convém
a seu marido.
 

(T.W.Adorno In: Minima Moralia)

O texto “O Inquietante” de Freud, publicado em 1919, também dá sustentação a uma teoria psicanalítica da imagem ou teoria do olhar (Rivera, 2005), tal como podemos também testemunhar nas artes de vanguardas (embora o próprio Freud não faça alusão a esses movimentos artísticos, inclusive porque ele não apreciava a chamada "arte moderna", aliás, confessando um não entendimento da mesma). As discussões de Freud encontradas no texto, bem como os elementos que ele aponta para investigar o sentimento do “estranho” dão embasamento para se entender objetos encontrados na arte, na literatura, e também no cinema (alguns estilos de filmes) que provocam o sentimento de inquietação, de estranheza e de angústia no receptor de tais objetos artísticos, fora de uma teoria tradicional da estética. Assim, entramos no âmbito da discussão de imagens e objetos (artes plásticas/cinema/literatura) que provocam hesitação, abalo e vacilação no sujeito que os contempla ou que os usufrui, tendo em vista “aquilo” que os olhos vêem mas que contém algo que desconcerta o olhar, lançando o sujeito para o desconhecido, embora rementendo o último ao sentimento de alguma coisa de natureza  “particular” e íntima.
Freud, no texto, justifica descartar as “categorias estéticas tradicionais” para propor em seu lugar o “inquietante”, que é a substituição do “belo” pelo “estranho” (ou até mesmo o “bizarro”), assim apontando para um tema marginal nos tratados de estética, quais sejam, situações e objetos encontrados na arte que provocam inquietação e angústia nos apreciadores das artes. Aprofundando sobre o tema, Freud faz uma pesquisa semântica da palavra Unheimliche e descobre, na língua alemã, a ambiguidade presente na mesma, ou seja, o inquietante é ao mesmo tempo o estranho e o familiar: “O Inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar” (Freud, 1919).
Daí, a questão levantada pelo pai da psicanálise sobre o que faz com que o familiar se torne estranho: em que medida o familiar causa estranheza? O que se encontra velado, oculto no estranho, que causa tais sentimentos desconcertantes aos sujeitos? Ora, o inquietante remete ao inconsciente, ao retorno do recalcado e, por conseguinte, à questão do medo infantil da castração, mobilizada pelas fantasias incestuosas da criança com relação aos pais (o reconhecimento e a recusa sobre aquilo que na psicanálise clássica se denomina de “complexo de castração”, aventada na teoria da sexualidade infantil).
O conto fantástico de Hoffman, “O Homem de Areia”, é então analisado por Freud, que a partir dele acaba descobrindo os elementos relacionados à vida psíquica que geram o sentimento de inquietação: o tema do medo infantil de ter os olhos roubados, visto na figura de Nathaniel, personagem central do conto. O “Homem de Areia”  traz à tona a temática psicanalítica do medo infantil da castração (por exemplo, o medo primitivo de ferir os olhos, ou o de ficar cego, que são substitutivos do temor inconsciente da castração, tendo em vista que a ameaça de perder o pênis pode se estender, inconscientemente, à idéia de perder outro membros do corpo, sendo os olhos os substitutos privilegiados pela sua conotação edipiana). Mas Freud também discorre a respeito de fatores infantis relacionados à gênese do sentimento inquietante, estabelecendo relações de tais motivos com a vida psíquica infantil e primitiva superada: o tema do “duplo” (defesa contra a aniquilação e a morte), do retorno do mesmo e da onipotência do pensamento, todos esses derivados do narcisismo infantil primitivo, que apontam para os elementos arcaicos de nosso psiquismo que, não obstante, teimam em permanecer na vida psíquica e que acabam por serem "suscitados" e mobilizados por determinados eventos da experiência individual. E, mais ainda, Freud aponta o medo da genitália feminina, que acaba por gerar no sujeito a angústia, assim provocando uma defesa psíquica no neurótico expressa na recusa do mesmo sobre o reconhecimento da castração, mobilizada pela visão da genitália feminina, que assim também tem o poder de suscitar um forte desejo de retorno ao ventre materno.
Na psicanálise, os objetos de fetiche do pervertido que lhe causam gozo e prazer - posto que o perverso se realiza sexualmente com tais objetos, em vez de uma relação genital "completa" - serviriam para enconbrir e, ao mesmo tempo, substituir o falos que falta à mãe, simbolizando a recusa da castração e da falta, na medida em que o objeto fetiche seria uma outra coisa no lugar do pênis faltante. Assim, a tansgressão do pervertido pode significar os seguintes fatores: a recusa da mutilação, e a possibilidade de "atualização" de desejos sádicos e masoquistas inconscientes, passíveis de existirem nas fantasias sexuais de qualquer indivíduo dito "saudável". Já não dizia o próprio Freud que "neurose, é, por assim dizer, o negativo da perversão"? Ou seja, que os gérmens da perversão fazem parte da vida sexual do neurótico ("normal"), tendo em vista a natureza errática e plástica das pulsões e suas possibilidades de satisfação sexual em objetos variados?
Pois bem, a respeito do "horror" provocado pela visão do sexo materno (que, por ser um buraco, ou uma "fenda", causar a impressão de ser uma "ferida" para as fantasias infantis), cuja imagem prenuncia o medo da castração e, assim, a verdade sobre a fragilidade e impotência humanas -  determinando a infelicidade universal encontrada no impedimento de um retorno ao ventre da mãe -, fazemos alusão a algumas passagens do filme "La Pianiste", naquilo que o filme suscita de estranheza, no tocante ao mundo sombrio da sexualidade perversa da personagem. O texto de Freud, que apresenta uma teoria psicanalítica da imagem e do olhar, nos fornece alguns elementos importantes para ensaiarmos tentativas de esclarecimento sobre a "estranheza" que a personagem central do filme nos evoca, além de atentarmos para o filme em si mesmo, como uma obra, para além de uma leitura reducionista psicologizante da personagem. As cenas fortes que mostram as "anomalias eróticas" de Érika, a pianista, bem como seus fetiches sexuais (sua automutilação, seu gosto por artigos pornográficos de caráter sado-masoquista, etc) e a sua tumultuosa relação com a mãe, causam no público aquele mesmo sentimento de inquietação e de desconforto, ainda mais quando confrontados com a rigidez da personagem no seu falso "ascetismo" maquiado pela profissão de professora de piano.
Mais instigante ainda é a relação que Érika tem com a música erudita, sendo ela mesma uma exímia pianista, além de uma rígida professora com relação aos seus alunos. À primeira vista, parece ser um paradoxo o contraste estabelecido entre o mundo ignóbil da sexualidade de Érika e a sua erudição e afeição pela música séria. No entanto, as barreiras entre tais mundos, aparentemente dissonantes (o erotismo "desviante" e a abstração encontrada na música como arte autêntica), revelam-se tênues, inclusive, um podendo jogar luz acerca do outro. Pensamos que essa questão da música ilumina a complexidade da personalidade de Érika, assim apontando para uma "verdade universal" embutida na particularidade da mesma, o que permite ao público se reconhecer  na personagem e ter alguma "simpatia" e compaixão (por que não?) com relação a ela, a despeito de toda aversão e estranhamento que ela possa provocar. Desta forma, a perversão de Érika, longe de ser uma "patologia" particular de uma mulher, cujas relações com a mãe são por demais doentias (aqui lembramos especialmente da cena na qual Érika, dormindo com a mãe, agarra essa e tenta uma relação forçada, suplicando seu amor, e depois lhe dizendo "Eu vi os pelos de seu sexo"), na realidade, pode dizer mais a respeito das deformações que todos nós trazemos, sobre nossas dores e feridas como seres carentes de "amor", e condenados à impotência social. A verdade subterrânea da condenação histórica das pulsões, pelo processo civilizatório, pode ser evidenciada na personagem.

As elocubrações colocadas acima sobre o filme do diretor Michael Haneke não se dão à toa. Aliás, ao considerarmos o filme "La Pianiste" uma obra-prima, tais motivos tornam-se mais do que suficientes para ousarmos levantar essas idéias. As referências sobre T. W. Adorno e aos compositores Schubert, Schumann e Schoenberg numa passagem do filme, encontradas na cena do primeiro diálogo estabelecido entre a pianista e o jovem Walter - rapaz por quem Érika engata uma relação "amorosa" e, assim, violenta, posto que ali surge a possibilidade de realização de suas fantasias que, não obstante, Walter não compreende e repudia tornando-se muito mais "cruel" que a própria Érika - são por demais elucidadoras. Nessa cena, Érika diz a Walter, depois de um recital privado, que tem uma paixão pelas músicas de Schubert e Schumann, mencionando uma obra composta por Schumann pouco antes dele enloquecer (fazendo referência ao seu "crepúsculo da espírito"), assim citando um texto de Adorno, "Fantasia em Dó Maior", no qual ela diz que o filósofo fala de Schumann, sobre a sua loucura derradeira. E Walter, ao tocar no recital, apresenta-se dizendo querer tocar  uma peça de Schoenberg, mas, em "homenagem" à Érika, escolhe Schubert: "Decidi esquecer Schoenberg e tocar Schubert".
Ora, nos textos de Adorno dirigidos à arte e à música, encontramos elogios à música nova de Schoenberg. Diz o filósofo que  as inovações formais da música dissonante (como a música escrita por Schoenberg nas suas "obras atonais") remetem aos "movimentos corporais do inconsciente", aos traumas da existência mutilada pelas forças sociais do processo histórico e, por isso, essa nova música teria um efeito insuportável e desconcertante aos ouvidos "domesticados" do público - esse, talvez já acostumado com um tipo de uma música mais conformista e adaptada ao mundo administrado, como no caso da música produzida pela indústria cultural. Acerca das inovações de obras atonais, diz Adorno que: "As obras atonais são documentos no sentido dos documentos oníricos dos psicanalistas" (...). A menção à filosofia da música de Adorno no filme dá indícios sobre as dissonâncias encontradas na subjetividade da personagem, trazendo à tona a sua vida erótica tumultuada, e a impossibilidade de satisfação da pulsão. Walter não entendeu e jamais entenderia as fantasias perversas de Érika, mas a promessa de realização de uma forma de amor - mesmo que "desviante" _ entre os dois não poderia jamais ser realizada. O que há de tão perturbador na relação entre a pianista e o jovem? Assim, a qualidade estética do filme também se encontra na possibilidade de desconcertar o espectador e poder apresentar, na linguagem do cinema, as tensões existentes entre a arte autêntica e a sociedade, as pulsões e a música, o "recalcado que retorna" e as convenções sociais da vida burguesa.

Referências bibliográficas utilizadas:
Adorno, T.W. Schoenberg e o Progresso In: Adorno, T.W Filosofia da Nova Música
Freud, S. O Inquietante In: Freud, S. Obras Completas
Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
Rivera, T. Arte e Psicanálise

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Melancholia como antiepopeia


Invocação aos letrandos

Ontem, dia 20 de junho, eu vivi um dos desafios mais importantes de minha vida profissional: a responsabilidade de falar publicamente sobre o filme Melancholia (com h, como faço questão de escrever e conforme explico nesse outro post), de Lars “von” Trier. Digo profissional porque a fala – a convite de meu amigo Sebastião, coordenador do projeto Cinema e Utopia, que promoveu a exibição do filme – foi também uma atividade acadêmica substitutiva de uma aula da disciplina “Estudo do Texto Literário: Drama e Épica”, que eu ministro na UEMS. E digo um dos desafios mais importantes porque considero esse filme um dos mais importantes já realizados no cinema mundial, e isso não só por suas qualidades estéticas como por sua seriedade: pela seriedade dos temas que trata e pela seriedade com que os trata (pois há outros filmes “sobre o fim do mundo” muito menos sérios).

Enquanto atividade acadêmica, a exibição do filme tinha – aliás, no momento em que escrevo ainda tem – o objetivo de estimular uma reflexão sobre a leitura de Georg Lukács das epopeias homéricas no início d’A teoria do romance. O que pressupõe, naturalmente, a possibilidade de traçar alguma relação entre o filme de Trier e essas epopeias. Ao longo da exibição do filme, no entanto, me convenci de que pautar minha fala nessa discussão produziria uma redução muito grande do filme em si mesmo, principalmente para os outros espectadores, que eram uma parte considerável da plateia e não conheciam o texto de Lukács. Além disso, a exibição inteira foi marcada por um problema que se tornou um assunto prévio obrigatório em minha fala: a cópia que tínhamos era dublada, ou pelo menos não conseguimos acionar o idioma original. Isso, num filme de arte, gera prejuízos enormes, pois as dublagens ficam sempre muito aquém do tratamento que o diretor e os atores concedem às entonações de vozes.

E, de fato, muito da densidade humana contida nos tons de voz se perdeu, principalmente nas partes mais dramáticas do filme; sobretudo, como acentuei em minha fala, no que diz respeito ao sofrimento da personagem Claire (sobre a qual falarei muito pouco neste post). Algumas risadas na plateia me convenceram definitivamente disso. Dessa forma, optei por fazer uma fala totalmente antididática: ao invés de trabalhar questões teóricas ou mesmo apresentar uma interpretação mais ou menos coesa e coerente do filme, esforcei-me por comunicar meu entusiasmo e, mais que isso, meu reiterado pasmo diante dele; minha sensação de sua força e sua grandeza, prejudicadas – sobretudo em sua dimensão humana – pela dublagem. Tentei fazer algo semelhante à estética do choque de Charles Baudelaire: algo como uma aula de choque.

No fim das contas, esse procedimento talvez seja o mais condizente com a complexidade e a profundidade de um filme – ou outra obra qualquer – como Melancholia. Muito mais do que respostas, Melancholia apresenta questões, provocações. Ainda assim, o esforço de pensar essas questões de uma forma mais sistemática também é necessário, e este post constitui uma tentativa de suprir, parcialmente, é claro, essa lacuna. Como uma das formas de fazer isso é justamente pensando a relação entre Melancholia e as epopeias homéricas, este post também servirá de estímulo para uma atividade reflexiva e discursiva – ou seja, uma pequena produção textual – de meus alunos em torno disso. 

Esclarecendo minha estratégia didática/paradidática, meus alunos serão orientados a produzir um comentário livre sobre essa questão (as relações inferíveis entre Melancholia e a leitura de Homero por Lukács), tomando ou não este post como ponto de partida mas, em todo caso, postando essa pequena produção textual como um comentário a ele. Quem quiser, pode assinar seu comentário com pseudônimo, informando-me sua identidade pessoalmente ou por e-mail. Trata-se de uma atividade (e uma experiência) simultaneamente didática e paradidática porque além dos objetivos crítico-didáticos, ela também visa estimular a intervenção crítica em espaços virtuais.

Melancholia: uma antiepopeia extrema?

Muitos conhecem as palavras com que Georg Lukács inicia A teoria do romance: “Afortunados os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa do caminhos transitáveis e a serem transitados, e cujo rumo a luz das estrelas ilumina”. No decurso de um longo parágrafo, o teórico húngaro tece um comovido elogio a Homero, como uma espécie de testemunha de um tempo de unidade plena entre o homem e o mundo. Um tempo não isento de conflitos, mas em que as próprias contradições humanas acham-se como que previamente glorificadas e legitimadas pela quase identidade entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses. Os deuses gregos não apenas contêm traços extremamente humanizados como habitam praticamente o mesmo espaço (o monte Olimpo e, no outro extremo, o Hades, são locais situados na geografia grega, e não em planos transcendentes) e participam dos mesmos conflitos que os homens.

Nessa humanização tão transparente, os deuses homéricos glorificam tanto as virtudes quanto as baixezas humanas, e por isso o homem está a salvo das inquietações espirituais: tudo no mundo contém uma face humana. E tudo isso a epopeia celebra; a toda essa altivez humana a epopeia tenta fazer justiça em suas próprias dimensões e no canto solene e entusiástico dos feitos (ainda que dolorosos) de seus heróis. Heróis grandiosos por seus feitos individuais mas também enquanto representantes maiores de uma raça de heróis; uma raça que se orgulha desses feitos, tenham eles raízes históricas ou não, mas sempre dignificados pelo revestimento mítico.

Não é difícil, para quem assiste Melancholia, perceber que esse filme é quase o contrário absoluto de tudo isso. Mas eu faço questão de sublinhar todas essas palavras porque todas elas são importantes, inclusive o quase. Pois pelo menos num item fundamental o filme de Trier é muito semelhante à epopeia homérico: em sua pretensão de uma grandiosidade, de uma espécie de majestade. O que em Homero se realiza pela solenidade dos versos decassílabos, no filme se traduz na solenidade das imagens iniciais, em câmera lenta, acompanhadas de uma música igualmente solene, e que serão retomadas no final, quando, após um “miolo” mais realista e de registro estilístico mais rebaixado, um tom mítico-simbólico voltará a predominar no filme.

Dessa forma, essas imagens também condensam o que se pode chamar de resíduo mítico em Melancholia. A cena que abre o filme, quando pássaros caem por trás do rosto atordoado de Justine, de forma muito semelhante a anjos caindo; a cena em que um cavalo cai dolorosamente, como que puxado para trás, por uma força gravitacional estranha, anormal; ou mesmo a cena em que Justine, vestida de noiva, tenta angustiadamente se livrar dos cipós que a prendem; e ainda a cena em que, também vestida de noiva, ela boia como um cadáver (embora com uma expressão beatífica) num rio; todas essas cenas, que parecem remeter aos sonhos algo proféticos ou premonitórios da própria Justine, têm uma expressividade simbólica muito próxima à do mito. Justine, aliás, tem algo de uma figura recorrente nas epopeias (e nas narrativas com elementos míticos em geral, incluindo a Bíblia) que é a figura do vidente, do profeta: daquele que vê o que os outros não conseguem ou não querem ver.

Aliás, mais do que resíduos míticos, essas imagens constituem uma reconfiguração de elementos míticos em um contexto radicalmente antimítico, um contexto de quase completo desencantamento e desamparo existencial e metafísico. O que é amplitude repleta de vida na Odisséia e mesmo na Ilíada (apesar de tantas mortes ocorrerem em ambas) em Melancholia é amplitude vazia, despida de essência e vida humanas; uma espécie de desertificação da existência, plasmada sobretudo nos jardins rigorosamente planejados da mansão de John. Mesmo quando o “colorido da vida” predomina, como na longa parte dedicada ao casamento de Justine, essa “vida” é tão mesquinha, tão explicitamente falsa e regida pelas aparências, e o ser humano vale tão pouco diante dessas aparências e demandas mesquinhas (as aparências mandam tanto que o mestre de cerimônias, ofendido pela falta de cerimônia da noiva, se recusa a olhar para ela), que a própria vida surge como algo miserável, por vezes quase rastejante.

Aqueles que na epopeia teriam a função de transmitir ensinamentos, de zelar pela verdade e pela justiça, em Melancholia revelam-se os mais mesquinhos: o pai de Justine, quase um ancião, ao invés de sabedoria transpira devassidão moral (ele chega a chamar a filha de “Beth”, como chama todas as suas amantes); o patrão, longe de conter algo da dignidade de um rei que zela por seus súditos, é um indivíduo arrogante ao extremo, que, oculto sob uma máscara de benevolência, impõe à empregada a obrigação de criar uma frase publicitária na noite de núpcias, e a um jovem empregado a obrigação de extrair dela essa frase, sob pena de ser demitido. Na segunda parte, centrada na vida familiar de John – um “mundo fechado”que é ao mesmo tempo um espelho das angústias modernas , a suposta soberania da razão mostra-se pronta a se tornar desespero tão logo se revele falha. Os velhos agem como crianças inconsequentes, e a única criança do filme parece um velho precoce (em algumas cenas, os cabelos do menino parecem grisalhos).

O que é unidade ideológica na epopeia torna-se aqui uma espécie de estrutura bipolar, evidente nas inversões de situação ou configuração moral e psicológica dos personagens nas duas partes. Se na Odisséia o impulso por aventuras conduz a alma pelo mundo, em Melancholia o confinamento ao espaço fechado do rito simbólico é imposto por uma força ou vontade obscura. Se em Homero cada ato dos personagens espelha sua alma, como se a alma fosse tão ou mais interior do que exterior), no filme de Trier a própria alma está em questão. E, no entanto, o próprio planeta destruidor é uma espécie de reflexo ou emanação dessa alma niilista, dessa alma que duvida de si mesma (mas também algo maior do que ela, ou do que esse desamparo a que ela se reduziu ou ameaça reduzir). Por isso intitulei meu outro post “Melancholia, morte e alma do mundo”.

Ao mesmo tempo, Melancholia é um filme onde certo heroísmo é um dos elementos mais importantes. Nada a ver, entretanto, com o heroísmo hollywoodiano, onde o bem e o mal se separam como água e óleo. Trata-se, pelo contrário, do heroísmo tortuoso, confuso e cindido da própria Justine, com sua ânsia de não se entregar ao mundo de falsidade; um heroísmo que, na segunda parte, inverte-se numa crueldade quase absoluta, mas que se recompõe, e de forma mais completa, no final, quando ela constrói a “cabana mágica” para “proteger” a si mesma, à irmã e ao sobrinho. Um heroísmo ligado a um sentido de inocência ou pureza que, como o Sebastião acentuou muito bem, liga a personagem aos animais e à própria criança. E não importa se esse heroísmo fracassa “na prática”, pois é da situação espiritual do homem contemporâneo que trata Melancholia. É ela que a própria melancolia, assim como o planeta “Melancholia”, condenação e alma do mundo, simbolizam.

Um mundo, como se vê, muito distante do mundo pleno, povoado de deuses e de sentido humano dos gregos, e onde o medo do nada, da aniquilação absoluta (figurado sobretudo em Claire e seu marido, John), se tornou imperioso. Um mundo onde o mapa estrelado dos caminhos transitáveis” de que fala Lukács foi substituído por uma rota catastrófica, condenatória; um mundo do qual os deuses (ou, no caso, Deus) foram enxotados pelo materialismo extremo – o culto do dinheiro, das aparências, da propriedade, da ciência –, mas que parecem “retornar”, de forma residual, sinistra e impessoal na forma de um corpo celeste; um “mero” corpo celeste, no entanto, dotado de uma espécie de onipotência cósmica. E um corpo celeste, além disso, com cuja “alma” de certa forma a alma da própria Justine se comunica; com a qual, a bem da verdade, ela chega perto de fazer amor. Em suma, há realmente algo de uma dimensão mítica nessa personagem, tão íntima da espécie de planeta-deus, “Melancholia”, que porá fim à vida na Terra.

Mas enquanto essa dimensão mítica se espraia plenamente por cada recanto do canto épico, em Melancholia ela (ou, talvez, a consciência dela) tornou-se privilégio de uma mulher transtornada. Como se apenas no transtorno, quase na loucura, em tudo que é contrário ao mundo regulado e coisificado, é que fosse capaz de emergir um sentimento capaz de ligar o ser humano a algo maior do que ele. Numa palavra, ao sentimento do Sagrado. 

E, no entanto, de alguma forma a nobreza do ser humano, mesmo esmagada, humilhada, reduzida a farrapos, pode ser entrevista o tempo todo em Melancholia: na ingênua altivez científica de John, que, somada a seu amor pelo filho, o torna um personagem quase nobre na segunda parte (e que o reveste de uma dimensão trágica quando essa altivez se transforma em insegurança e covardia); no amor, deformado e egoísta mas autêntico, do pai de Justine por ela; na nobreza com que o mordomo, depois ser submetido ao ridículo por aquele mesmo personagem, atende prestamente ao pedido de Justine para que arrume um quarto para ele; na nobreza do jovem “usado” por Justine e que, quando ela “cai em desgraça”, lhe oferece seus préstimos; na nobreza do próprio noivo, que, desprezado e humilhado em plenas núpcias, despede-se de Justine com um gesto carinhoso.

Nesse último caso, naturalmente, há uma “questão penelopiana” em jogo... E em tudo isso, a meu ver, o filme de Trier pode ser classificado como uma antiepopéia quase extrema, com uma atenção extra para esse “quase”. Pois a beleza e a grandeza de alma da epopeia ainda estão, de alguma forma, presentes em Melancholia e seus personagens. E não, é claro, uma epopeia no sentido estrito do gênero épico (como o define, por exemplo, Anazildo Vasconcelos da Silva), e sim no sentido do objetivo que Lukács atribui à epopeia e depois ao romance: o de produzir um espelho amplo para seu mundo de origem, um mapeamento, muito mais que de seus acontecimentos, de seus anseios, conflitos e esperanças.

Quem quiser discutir comigo essa questão, fique à vontade. Senão, que diga o quiser sobre o assunto. Dirijo-me a meus alunos, é claro, mas o convite é extensível a todos os leitores.


Nota póstuma:): Ao contrário de meu post anterior, onde – seguindo a opinião do escritor Reinaldo Moraes em seu livro Pornopopéia –, preferi manter a acentuação da palavra epopeia (cujo acento caiu na última reforma ortográfica), não me valho aqui dessa liberdade poética (e licença gramatical provisória: o novo acordo só será obrigatório a partir de 2013). Não só porque este é um post mais sério mas também porque Melancholia – como o próprio livro de Moraes – é também uma espécie de peia. Aliás, contrariando um pouco a leitura de Lukács, parece hoje evidente que toda epopeia é também uma espécie de peia. Que o digam Ulisses, Aquiles e outros heróis.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Os garotos ainda estão aí
(uma bravo'venon'dead'fishopéia)

















Este post começa com um agradecimento: ao Du Gezzu, onde eu comprei, com meu amigo e irmão Sebastião Ricardo, os ingressos para o show do Dead Fish (e muito mais) terça-feira passada. O Du Gezzu é um empresário que tem uma loja com esse nome (que eu não sei se é mais dele ou da loja) no centro de Campo Grande, onde vende camisetas e adereços de rock. À noite, quando a loja fecha, ele deixa o som ligado, com uma chama artificial bruxuleante, emitindo vibrações distorcidas para os incautos passantes da Rui Barbosa, quase ao lado do ponto onde eu tenho o privilégio (acreditem, é um privilégio) de pegar ônibus.

Pois foi a insistência em pegar o ônibus ali que me fez lembrar do show do Fish. Entre decisões e desdecisões, além do desânimo de chegar ao mercado mais próximo pra comprar o "alimento não perecível" que dava direito ao desconto, eu e o Tião decidimos ir. Quando entreguei a sacola ao Du Gezzo, disse brincando que era pena ter que comer o peixe sem arroz, mas acho que ele não entendeu, e me censurou com o ar mais cândido do mundo: "Ah, não... o arroz é pros velhinhos!".

E lá fui eu pra casa, pra depois sair de casa, e voltar pra pegar o ingresso, e depois perder o ingresso, achar o ingresso, ir pegar o ônibus, perder o ônibus e todos os outros ônibus, e ir a pé do Coophasul para o República, descidona brava. Andar a pé é outro privilégio que eu tenho, mas não é todo dia, digo, toda noite que eu faço isso à meia-noite. O que é um erro, porque o ar fresco e a própria imensidão da noite, que até o esbanjamento de eletricidade da Big Field torna mais bonita, convidam os bons pensamentos. Pra lá do meio do caminho, eu pensava que dessa vez precisava amar esta cidade, e disse em voz alta (nem tanto, pra não assustar algum mendigo, cachorro ou espírito): "Campo Grande, eu te amo". Era uma noite especial, mesmo.

Bravo
E o Tião lá no República, de cara comigo, mas, enfim, curtindo o Bravo, que rolava depois do Dor de Ouvido, que eu tinha perdido, provavelmente pra salvação da minha própria dor de ouvido. Não que os caras não sejam bons, pelo contrário, talvez façam o melhor - e mais violento - punk-trash de Campão. O Bravo, no palco, me soava  um pouco exato demais, e eu fiquei de longe, falando pro Tião sobre o ar classe-média da garotada, com suas roupas de marca e em suas rodinhas impenetráveis, daquelas que eu invejava quando adolescente, até ouvir e perceber o nível das conversas. Os caras lá na frente, e ainda o telão com o dvd do ao vivo do Dead  Fish, onde eu via sintomas protofascistas, de alguma forma pareciam me traduzir isso.

Mas eu sabia que nessa noite eu estava destinado a pôr à prova esses preconceitos ou, em todo caso, conceitos mal formados. E foi só me aproximar do palco e constatar a entrega dos rapazes pra sentir que a energia, ali, estava muito além de qualquer vigilância crítica. O que não significa isenta de crítica: mas quando o instinto reconhece que a coisa é boa a vigilância precisa se suspender pra deixar que ele exerça seus direitos. A crítica fica pra depois.

Falo instinto (e não, sei lá, "percepção estética") porque, como sempre acontece com as bandas de Campo Grande, foi a bateria que me pegou primeiro. Campão (Big Field é outra coisa) possui, em minha humilde e desqualificada opinião, os melhores bateristas do Brasil, incluindo o melhor deles, Jean Albernaz, que eu vi em ação implacável duas míseras vezes no falecido Dimitri Pellz, e que hoje integra a igualmente Dead Cow. O da outra Dead, a Venon, é, salvo engano, o Rodrigo Neves, um garoto com cara de nerd e alma de guerreiro. Foi nele que eu vi a alma de toda a banda e todo o lugar - a melhor alma que ali exalava: a warrior soul dessa warrior generation, que é também a senha desse computador do Lucas, meu sobrinho, que eu estou usando agora.

O que antes me parecia "exato demais" agora eu via que era exato e visceral, pois, muito mais que performance ou exibição técnica, havia ali entrega e beleza, com um sentimento expansivo que eu devo estranhar porque é um bocado mais otimista que o do rock - mais ainda o hardcore - dos anos oitenta. Achei impressionante como a precisão rítmica se alia ao uso abusivo dos pratos, um deles com vários furos, criando um efeito de propagação que transcende o ritmo mas não o contradiz. Nas três bandas isso acontece, mas em nenhuma, tive a impressão, com a fluidez da Bravo. Nas três bandas, também, as letras invocadas, com virtuosisismo e os arranjos trabalhados das guitarras, aliando a fúria punk com uma insistência melódica mais derivada do metal.

Venon Dead
E a atitude provocativa dos vocalistas, olhando nos olhos da platéia e, às vezes, usando o microfone como instrumento discursivo. "É tudo planejado", canta com razão o Renan Reggiani da Bravo. "Nós precisamos deles. Eles precisam de nós", discursa  o Rodrigo do Dead Fish, resumindo com isso a autoconfiança talvez excessiva, mas necessária, dos rebeldes dessa geração, se é que eu posso englobar numa só geração uma banda dos anos 90 e outras duas mais recentes. Mas acho que sim, pelo menos no sentido de que são bandas que precisam lutar contra dois fantasmas: o decreto da morte do rock, reiterado desde a explosão fabricada do neosertanejo, que foi uma forma de impor limites a uma geração (a dos anos 80) que começava a se afirmar como muito mais que um modismo; e também o fantasma da mídia, das câmeras que de tão onipresentes invadiram o inconsciente, e cerceiam tudo como tentação e imposição de padrões gestuais, visuais etc.

Tanto que quando alguém, brincando, chamou Rodrigo de "poser", não disse uma mentira absurda. Mas a Dead Fish não seria uma grande banda contemporânea se não assumisse de alguma forma sua condição, periférica que seja, no interior do monstro SIST. Rodrigo é herdeiro de Renato Russo e Raul Seixas, mas parece decidido a não se deixar devorar. Daí os dead fishes se darem o direito de serem posers sem abrir mão de serem alternativos. Quem quiser que faça a crítica, eu só deixo essa impressão, e essa confissão: quando encontrei Rodrigo, agradeci-o por exisitir.

Como agradeci, em típica comoção paternal, vários jovens ali: por existirem e serem quem são; por resisitirem. Por pogarem, alegres e enfurecidos, às vezes um pouco enfurecidos demais, talvez não tão conscientes quanto eu gostaria que fossem... Mas pode haver atitude mais torpe que a dos velhos que censuram a insuficiência do heroísmo que eles próprios não tiveram? Um rapaz com um brilho nietzscheano nos olhos, um Sapoeta perambulando ares pessoanos, um sujeito mais magro que eu insistindo em pogar no meio de montanhas como o José Bráulio, meu aluno, que felizmente preferiu usar os músculos do cérebro a ser pugulista. O pogo, às vezes, ameaçava desandar para a violência, mas a energia do som era sempre mais forte. Um detalhe: o guitarrista do Dead Fish, fera como ele só, usava uma camiseta do Venon Dead. Não vi mais ninguém, ali, prestigiando na pele as bandas locais.

"Veja, os garotos ainda estão aqui, gritando por mudança". Tive a impressão de que a referência, a anterioridade desse "ainda" é o "movimento dos caras-pintadas", marco na geração do Dead Fish. Até hoje se discute o quanto o Fora Collor foi um "movimento" espontâneo ou planejado pela mídia. Eu, que, como se diz, "vivi aquele momento", aqui mesmo em Campão, sei perfeitamente que planejamentos não faltaram nele, mas esses planejamentos envolveram não só a Rede Globo como o movimento estudantil e os partidos de esquerda.

Dead Fish
O discurso de Rodrigo, que às vezes parece extremamente partidário, mas que também insiste em reivindicar uma união para além de qualquer segmentarismo ou partidarismo (estou usando palavras dele mesmo), mostra que essa tensão está viva, e com ela a demanda de ir além do monstro voraz que se tornou o sistema político-econômico mundial e, claro, brasileiro. Com tanta água podre por aí, só mesmo sendo Dead Fisch pra nadar contra a correnteza. Ou Dead Venon, ou Bravo: viver bravo, falar bravo, ter dor de ouvido. Na hora certa, é claro.

Fim de festa, o Tião já tinha sumido. Subi a cachoeira, digo,a ladeira com o sangue mais vivo nas veias, mais feliz com Campão e quase invulnerável, não fisicamente, mas espiritualmente, às pequenas grandes misérias de Big Field.

Falando nisso, eu termino esse post com outra homenagem: ao bar Holandês Voador, que devia apresentar nesse domingo o terceiro Bolha Festival mas foi impedido pelos poderes instituídos do Cüartele Generale. Toda solidariedade aos bons piratas!

quinta-feira, 14 de junho de 2012

O Sol Negro

O tráfico de almas humanas
À esquerda e à direita
O Capital faz a sua pregação
E a Igreja do Diabo aprende
Muito bem a lição
E no final, Deus e o Diabo
Se misturam nesta terra
Projetada pela Mal
O nosso triste Eldorado
Imagine um Sol Negro
Não um buraco negro
Um sol que ilumina escuridão
Nascendo no horizonte
O sol da alegria e do carnaval
O gozo da torcida campeã
Algo que cobre toda nossa beleza
Uma nuvem, uma névoa
O Sol Negro que nos iluminará


segunda-feira, 4 de junho de 2012

Os suspiros dos fumantes ou seus "últimos" suspiros? O fumar como tabu


Desconfia dos que não fumam: esses não têm vida interior, não têm sentimentos. O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar... (Mário Quintana) 

O fragmento acima, do poeta Mário Quintana, pode causar certa estranheza hoje aos leitores, tendo em vista os tempos atuais em que percebemos uma obstinada perseguição e exclusão dos fumantes, assentadas na preocupação com a saúde, principalmente com as medidas rigorosas de restrição ao tabagismo no Brasil em ambientes públicos. A intensidade da expressão acima, de natureza aforismática, parece contradizer certo ideal dominante que tende a associar o fumar com algo condenável, “vergonhoso” e repugnante que, por sua vez, nos lembram as práticas higiênicas que, desde o final do século XIX, vieram regrar a vida social e determinar códigos de comportamentos dos sujeitos, baseados no discurso médico de conotação moralizante.

O poeta conhecido por sua aversão às convenções e que se auto-intitulava um “tabagista de coração”, testemunha por meio de seu lirismo relutante e bem humorado o silenciamento do espírito e da atitude contemplativa, vistos hoje como sinais de fraqueza, como atos de curiosidade ociosa, fatores repudiados pelo nosso sistema e cultura utilitarista. E, segundo Rui Castro, tragar é exercer um “diálogo interior” sendo que, o “suspiro disfarçado” pela fumaça, conforme a sentença de Quintana lança pista sobre a íntima relação existente entre o tabaco e a criação artística (ou do exercício do pensamento que reflete, na forma de lamento, o horror da realidade e as possibilidades de liberdade ainda não realizadas).

Na linha de pensamento do poeta Quintana, não seria a fumaça do cigarro a materialização do desejo, ou melhor, a nostalgia do desejo proibido? O tragar lembraria a promessa de felicidade não cumprida no processo civilizatório, ainda que o cigarro tenha servido à própria civilização, tanto em seus aspectos regressivos e (por que não?) progressivos? Por trás da proibição (ou da repulsa) ao fumo, encontra-se algo de natureza mais profunda, assim apontando para dois aspectos aparentemente contraditórios do cigarro: a tentação que lhe é atribuída remete tanto à possibilidade de sublimação representada pelo “tragar” do artista (segundo os poetas), quanto à de regressão suscitada pela felicidade alienante dos narcóticos, que, por sua vez, fornece ao fumante a ilusão de liberdade. Deste paradoxo acima colocado – as possibilidades “sublimatórias” e “regressivas” do cigarro – chego a identificar uma questão importante sobre o fumar e sobre o discurso social dominante que recai sobre os fumantes (a idéia de doença e do fumante como “doente”, fraco de caráter, sem falar que sob o regime nazi-fascista, muitos intelectuais foram perseguidos e executados, deixando explícito o "repúdio" que os fascistas tinham pelos "homens de espírito", como também o fato de que Hitler foi o primeiro a condenar e a proibir expressamente o fumo em determinados locais no ocidente).

Ouso até a atribuir ao fumar uma conduta fortemente marcada pelo sofrimento imposto interna e externamente ao indivíduo em uma sociedade por demais injusta, assim sendo o tragar uma via de expressão das “pulsões” proscritas e/ou administradas pelas sociedades tecnológicas que desenvolveram instrumentos mais sofisticados de controle da natureza. Novas discussões sobre este tema podem ser levantadas a fim de não recairmos em respostas fáceis sobre o assunto, visto que, nos temas polêmicos, em que as respostas já estão previamente dadas (no caso, ou se é contra ou a favor do cigarro), acabamos por fazer concessões facilitadoras. Para além das questões referentes aos malefícios do cigarro ao corpo das quais não nego em nenhum momento, tais discursos devem ser confrontados com as contradições do objeto em questão, tendo em vista as tendências sociais dominantes, tais como as propagandas apelativas sobre os malefícios do cigarro.

As propagandas antifumo veiculadas pelas horríveis imagens de "fumantes cadáveres" encontradas nos maços de cigarro, reforçam tendências básicas das sociedades administradas voltadas especificamente para a dominação do corpo que perpetuam o atrofiamento da esfera privada e particular dos sujeitos – as suas possibilidades de fruição que lembrariam a promessa de felicidade não realizada na nossa cultura. As imagens de “fumantes cadáveres” encontram-se presentes nos discursos que fortalecem tendências sociais regressivas e que, possivelmente, indicam a massificação dos sujeitos enquanto “corpo objeto” e alvo de crueldade. Nas imagens atuais vemos presente o princípio que rege a lógica de nossa sociedade: preparar as pessoas para as máximas do “sacrifício” e do sofrimento individual, assim como para o desejo de morte e vingança sobre aqueles que não correspondem às "normas" dadas. A publicidade antifumo possivelmente tem o poder de acostumar as pessoas ao “horror” gerado na sociedade com tendências totalitárias, por meio de uma nova espécie de barbárie exacerbada nas fotos publicitárias de corpos desfigurados e em estado de debilidade (o avesso do narcisismo), cujas vítimas “sacrificadas” nas imagens veiculadas possam representar a vida sem encanto, ou a perdida “unidade do corpo e da alma".


Também atento para a associação do fumo com a arte – os resquícios das “possibilidades sublimatórias do tragar” -, presente, por exemplo, nas obras de autores burgueses românticos que fizeram, outrora, o elogio ao tabaco. Assim, as tendências antiintelectuais fortemente presentes na contemporaneidade não corroboram com a transformação do hábito de fumar em tabu?

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Raul de novo, e novamente o Nova

Eu juro que queria escrever sobre Cachoeira, Gilmar Mendes e outros fatos recentes que têm afrontado nossa dignidade e inteligência, mas diante de águas tão sujas eu decidi pensar como Raul e fui fazer o que eu gosto. Ontem, então, eu revi Raul: o início, o fim e o meio, e saí da sessão gostando não só ainda mais de Raul como do filme em si mesmo, no qual prestei um pouco mais de atenção: à montagem excelente, com sua concepção “musical”, que orienta a alternância e a sequência das entrevistas e dos registros propriamente musicais, e também aos pequenos mas belíssimos eventos realizados em seu curso (por exemplo, a audição de uma carta-gravação de Raul, já em fim de estrada, para as filhas, e que pelo visto não havia chegado até elas).

Mas também prestei mais atenção ao final, para a beleza do reencontro de Raul com um Paulo Coelho no auge da fama de “escritor” promovida por Marcelo Nova, para as palavras de Caetano em defesa do mesmo Nova (e as que encerram o filme: “Raul, as pessoas não morrem”), enfim, para o espírito conciliatório com que esse final é conduzido, em consonância, mesmo, com a relativa tranquilidade que parece ter marcado a própria morte de Raul.

Saí dessa segunda sessão com autoestima elevada, beirando a arrogância (o que me obriguei a tentar corrigir), mais tocado pela beleza e pela força de Raul, sua música e mesmo a complexa mas afinal bonita teia de relações à sua volta.

Pena que muito poucas pessoas, aqui em Campo Grande, tenham visto o filme, que saiu de cartaz ontem mesmo. O que seria compreensível levando em conta o perfil crescentemente evangélico da população da cidade, mas que, por outro lado, destoa um pouco da “cena roqueira” de que a cidade se orgulha. É que quem ouve – e toca, às vezes bem – rock inglês julga Raul superado. Eu, embora tenha vivido minha adolescência nos anos 80, nunca entendi isso. Quer dizer, entendi mas nunca aceitei, e talvez por isso respeite tanto o Marcelo Nova, mesmo gostando bem menos, hoje, de suas canções.

A propósito, meu colega e amigo Paulo Edir sugeriu que “Lena”, do Camisa de Vênus, pode ter alguma relação com Lena Coutinho, a última companheira, digamos, quase oficial (porque o filme também sugere... ora bolas, vejam o filme!) de Raul. Não sei se essa relação é possível, mas, em todo caso, o próprio Raul compôs uma “Lena”.

Seja como for, “Lena” é uma das belas canções do disco Batalhões de estranhos, que eu já tive a honra de possuir, e autografado pelo próprio Nova ao final do mesmo show em que eu comprei o disco (e o Viva!, com a mais sórdida “Sílvia”), de um cara que queria comprar o então novo CD do ex-vocalista do Camisa. Como eu também queria esse CD mas havia ficado quase sem dinheiro, pedi um desconto ao próprio Nova, e consegui. Três pechinchas e três autógrafos (todos perdidos, agora): glórias bobas de tiete... Mas tudo bem, no fundo até Raul foi tiete, mesmo à distância – de Elvis, é claro.

Então fica aí, à guisa de aperitivo, a bela “Lena”, com sua bela letra, sua bela melodia e seu refrão sofrível e cheio de gás... E também a “Lena” do próprio Raul, que eu acabei de descobrir. E pra quem acha Marcelo Nova e o Camisa de Vênus muito misóginos, deixo também a mais sublime “Deusa da minha cama”, do também excelente Duplo sentido; o mesmo álbum duplo, aliás, que contém a primeira parceria de Raul com o Camisa e Marcelo, “Muita estrela, pouca constelação”, que também fica aí, digamos, à guisa de sobremesa, e em homenagem não aos english rockers bigfieldenses, mas a meus “velhos” amigos de Corumbá Lúcio e Nandinho, que um dia brilharam cantando essa canção em plena Avenida General Rondon – um encarnando o Nova e o outro Raul. Não lembro se o saudoso Siqueira (ou Cerqueira) ainda estava na batera. Mas, enfim... toca Camisa!!! E toca Raul!!!!!!





E já que alguém falou em Cachoeira, pobre topônimo ofendido, eu fico mesmo é com a Água viva  de Raul (e don Paulete), com erro de concordância e tudo.