VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Mais do mesmo, sempre?

Dessa vez me eximo de dizer qualquer coisa; confiram vocês mesmos (link quebrado; confira a charge abaixo) o quanto o "evento Breivik" trouxe à tona a boçalidade dos "formadores de opinião" nacionais. Com um detalhe: o mesmo "humorista" produziu, à época do massacre de Realengo, uma charge não menos cretina, mas com sentido bem diferente no que se refere ao assassino (idem). Há algo de mais pernicioso nesses "artefatos culturais" do que, por exemplo, o que fazia o Casseta e planeta; sua pretensão a humor nem de longe escrachado, mas, pelo contrário, "refinado".

De novo cito Renato Russo no título de um post sobre o mesmo assunto. Isso não tem nenhum sentido esteticista ou o que seja; simplesmente, mais uma vez foi um verso dele que me ocorreu ao pensar no que dizer. Mas quero registrar a seriedade - e preocupação - máxima dessas palavras. É o que me faz decidir, novamente, a não ilustrar o post.

E quero esclarecer algo importante sobre esses dois últimos posts. A atrocidade cometida por Breivik é um fato irredutível em seu horror. Mas o que tem me assustado particularmente é o tipo de celebração implícita, e não de todo inconsciente, que se tem feito dele.

Aliás, esses dias o noticiário voltou a se ocupar de um fato atroz, felizmente não de consequências fatais: uma agressão absurda de um jogador de futebol por outro. Quando é que nossos "analistas" se perguntarão sobre a conexão profunda desses atos, ao invés de apartá-los em gestos que reiteram outras formas de violência simbólica, como o racismo bem mais do que implícito na charge de Alpino?

Acréscimo após a postagem: vejam, aliás, o "Top 10" recém-publicado pelo mesmo yahoo:
http://br.esportes.yahoo.com/blogs/redacao/top-10-faltas-mais-violentas-da-hist%C3%B3ria-futebol-151618199.html

Acrécimo em 28/07: Comparem as duas charges: numa Alpino usa a foto de Breivik, na outra faz uma caricatura grotesca de Wellington. Nesta, é explícito que o ponto de vista dos espectadores é o mesmo do caricaturista, ou seja, Wellington é chamado de idiota (como deve ter sido na vida real). Na outra, não é tão explícito que esse papel caiba às leitoras: pode-se entender que também elas são "criticadas"; a meu ver, porém, aqui o conluio é completo: Alpino, suas leitoras e seu Breivik "fecham" na ridicularização de alguém que só figura no título da charge: Osama Bin Laden, o terrorista "feio". O racismo, lembre-se, foi uma das motivações de Breivik.

Acréscimo em 10/01/2012: Descobri que os links para as charges de Alpino estão quebrados, então me vejo obrigado a publicá-las aqui. Como só as obtive em formato reduzido, transcrevo as falas dos balões:

"Melhorou e muito..."

"A maioria das pessoas acham que sou um idiota..."
"Isso foi antes... Agora todo mundo tem certeza...

Já sonhei em ser cartunista, e não posso deixar de admirar o traço de Alpino. Essas charges, no entanto, me fazem duvidar de sua inteligência - cronística, "humorística" ou o que quer que seja.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Sim, a ignorância é vizinha da maldade

Um exemplo do que eu disse no penúltimo parágrafo (ou primeiro acréscimo) do post anterior:

"A mistura de raças em países como o Brasil resultou em “altos níveis de corrupção, baixa produtividade e conflitos entre as diferentes culturas” para Anders Behring Breivik, o norueguês que assumiu a autoria dos atentados em Oslo. A observação está presente no manifesto “A European Declaration of Independence – 2083” (Uma declaração de Independência Europeia - 2083) – atribuído a Breivik e divulgado na internet horas antes do massacre na Noruega."

O título dessa matéria do yahoo (leia aqui), que certamente suscitará tantas discordâncias quanto concordâncias dos leitores, é "Para atirador da Noruega, mistura de raças do Brasil é 'catastrófica'", e a ela não se segue nenhuma avaliação crítica. Ilustrando-a, vemos o "atirador" fazendo mira com uma arma de alto poder de destruição sob um fundo branco, fundindo-se portanto ao fundo da matéria, num conluio mais do que sintomático.  A "reportagem" ainda contém expressões francamente elogiosas ao "manifesto", como "a declaração" e "cheio de referências históricas", e se permite até transcrever um "conselho" de Breivik: "Seja extremamente cuidadoso quando lidar com material radiológico". Quanto zelo, diria um incauto chegado na Terra neste instante.

Esse tratamento no mínimo displicente - e no limite conivente, para não dizer bajulatório - diante de gestos e ideias atrozes deveria envergonhar qualquer jornalismo, mesmo o mais apressado ou marrom. Ele torna o título do meu post anterior mais sério e menos pessoal do que eu imaginava quando o escrevi.

Eu pensei em corrigir Renato Russo, que cito no título deste: a ignorância é vizinha do fascismo. Mas que isto fique registrado assim, em letras menores, seja porque nada disso é para trocadilhos de qualquer espécie, seja porque alardear a estupidez que viceja nos atos humanos não é a melhor forma de combatê-la. Permitam-me, no entanto, insistir nessa triste verdade: o fascismo anda à solta. Resguardemo-nos dele, em nossos atos, palavras e sentimentos.

Acréscimo em 26/07: Alguém popderia me perguntar como fica o "caso Juan" nisso tudo. Eu responderia com outra pergunta, mais uma vez citando Renato Russo: "Qual é a diferença?" A falta de um "programa"? O número de vítimas (mas também de executores) da covardia extrema? A diferença, no caso, é que esse tipo de "ação" se tornou comum demais e eu me esqueci dela. Aliás, o verso que antecede aquela interrogação (numa canção sobre o fascínio da violência) é "Nós assistimos televisão também". Há muito tempo isso tudo já foi longe demais, e não se desenha nenhum horizonte concreto para além disso.

Quero acrecentar outra coisa: no outro post eu me referi a "motivações racialistas" para explicar a complacência da mídia com as "ideias"de Breivik, mas é claro que há outras elementos envolvidos, inclusive nosso conhecido complexo de infeioridade frente aos "países desenvolvidos". Há um post neste blog, sobre outra questão, mas que toca diretamente nesse assunto.

domingo, 24 de julho de 2011

Algo de "inteligente" a dizer sobre isso?


Duas tragédias - muito diferentes em comoção e, sobretudo, proporções, sem que haja uma relação direta entre esses termos - têm ocupado o noticiário desses dias: a morte de Amy Winehouse e o massacre que vitimou, até agora, pelo menos 93 pessoas, em sua grande maioria jovens e adolescentes, na Noruega. O perfil deste blog praticamente me obriga a pelo menos registrar - "arquivar" soa mais inadequado do que nunca - esses tristes eventos.

Como disse, são eventos muito desproporcionais, e há algo de uma coincidência sinistra em sua proximidade, inclusive pelo fato de que é bem possível que tenha sido a morte da cantora britânica o que suscitou mais lágrimas e homenagens ao redor do mundo. Mas qualquer comentário para além disso é abusivo e pernicioso. Amy Winehouse foi uma artista notável, e sua perda precoce - com a mesma idade, como se sabe, de outros músicos igualmente talentosos - é digna, sim, da comoção que despertou. Mais do que isso, é digna da revolta por sabermos que este é mais um caso a atestar essa verdade que Renato Russo sintetizou em um belo e doloroso verso: "E há tempos são os jovens que adoecem".

Mas que dizer do que houve na Noruega? Que dizer do que fez Anders Behring Breivik? Que palavras minimamente inteligentes podem ser ditas diante disso? Tudo o que a análise psicossociológica mais completa possa dizer a respeito é fútil e redundante diante disso que podemos até não dizer com todas as letras, mas sabemos muito bem: que isso é "só" mais um sintoma de um estado de corrosão extrema, da falência estrutural e espiritual desse nosso belo projeto de "civilização".

Não quero com isso minimizar a singularidade do acontecido, tão cheio, aliás, de tragédias individuais. Embora - e é triste constatar e admitir isso - a distância geográfica, as diferenças culturais etc., ou seja, tudo o que torna a realidade dos países nórdicos uma realidade "outra" para um brasileiro, sem dúvida diminua o impacto dessas notíciais em mim. Do contrário, eu talvez adotasse simplesmente - e novamente - aquela sábia divisa, dizem que chinesa, segundo a qual o silêncio sim, é o verdadeiro ouro. Pois é inevitável a sensação de que usar o que houve para "reclamar do sistema" contém algo de leviano.

Mas muito mais leviano não é o que faz "o sistema"? Sim, o Monstro Sist, o sistema de destruição programática da vida. E, já que citei Raul Seixas, e embora talvez não devesse escrever isso num autonomeado espaço crítico, o sentimento mais forte - não direi mais profundo, porque espero que não seja - que me advêm diante disso se traduz naqueles versos em que ele e/ou Paulo Coelho amealham visões proféticas do Apocalipse a Eliot, e as sintetizam num refrão que diz, simplesmente: "Está em qualquer profecia que tudo se acaba um dia". Lembrar - saber - disso, às vezes, é a única coisa que consola de "ver o noticiário" nesses dias.

Nota em 25/07: Se é o caso de dizer algo mais "específico" a respeito dos "atentados" na Noruega, não basta, a meu ver, obervar como eles atestam a ressurgência do espírito nazista (não sendo uma completa surpresa que isso se dê num país nórdico - vide o que os filmes de Bergman testemunham a respeito), ou reforçam, pelo "antiislamismo" de Breivik, a complexidade da situação instaurada pelas ditas "invasões bárbaras". O dado mais surpreendente nisso tudo, a meu ver, é a deferência com que a mídia tem se referido às "ideias" de um fanático tão inconsequente e incoerente quanto qualquer outro (aliás, "qualquer outro" é uma generalização absurda). Eu também acharia louvável a forma como a mesma mídia tem se referido a ele - "o suspeito", e não, por exemplo, "o assassino" ou "o maníaco" -, não fosse o caráter de absoluta exceção desse tratamento, de motivações racialistas evidentes.

Na mesma data: Também quero acrescentar algo - necessariamente mais leve - a respeito de Amy Winehouse. A primeira vez que a vi - e ouvi - foi numa gravação de um show, num dvd que um amigo e ex-aluno, José Fernando, me apresentou. Pelo descompasso entre a figura - já entào algo deteriorada - e a voz, perfeita, e vigorosíssima, cheguei a pensar que se tratasse de um playback, e tive que ser convencido do contrário. Enfim, desde então tenho essa impressão: de que a voz de Amy Winehouse é uma "entidade" como que independente de seu corpo.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Sobre a atualidade do tema "tabus acerca do magistério", ou o 'bullying' em questão


Para as minhas aulas nos cursos de licenciatura, tenho certo apreço pelo texto de Adorno chamado "Tabus acerca do magistério", que, insistentemente, venho utilizando como ponto de partida (juntamente com os textos "Educação após Auschwitz" e "Educação contra a barbárie") para reflexões em sala de aula. Nesse texto, Adorno aponta questões cruciais encontradas nos fatores objetivos e, principalmente, subjetivos envolvidos na profissão do magistério, nas relações entre professores e alunos e na estrutura escolar de ensino, perpassando por temas tabus relacionados à profissão docente - ainda bastante vigentes hoje, tendo em vista os preconceitos referentes ao magistério -, e à violência inerente às relações institucionais escolares, sendo essa o reflexo de uma sociedade extremamente desigual com tendências à barbárie. No último semestre, tendo em vista trabalhar (e criticar) o tema "bullying", bastante explorado pelo mass media, resolvi passar o filme "If...", de Lindsay Anderson, premiado em 1969, juntamente com o texto de Adorno.

O filme, que trata da rebeldia de estudantes numa instituição de ensino inglesa tradicional, é considerado obra cinematográfica de referência para o tema "revolução cultural" e rebelião juvenil na década de 60. Não obstante ser uma obra inesquecível do cinema britânico (destaco algumas cenas "surrealistas" permeada de simbolismos e de tiradas poéticas), e apresentar um sistema rígido de ensino (contrastante com as reformas pedagógicas atuais do século XXI, úteis às políticas neoliberais, tais como o lema "aprender a aprender", entre outros), para meus intuitos, o filme também ilustra as hierarquias oficial e não-oficial existentes nas escolas e que seguem ainda existindo hoje no âmbito escolar, discutidas por Adorno no texto, e que acabam por constituir as relações de poder, contribuindo para a aversão de crianças e jovens contra a educação escolar e o corpo docente que a constitui: aquela hierarquia que diz respeito a uma espécie de aluno que se destaca por seu bom comportamento e bom desempenho de notas que, prestigiado como "aluno exemplar", enquadra-se bem nos moldes de uma sociedade extremamente individualista e competitiva; e aquela - a hierarquia não-oficial - que aponta para aqueles tipos de sujeitos que se destacam pela força física. Esses últimos, no entendimento de Adorno apresentados como os "ressentidos" - pois excluídos de uma formação cultural e intelectual e que desenvolvem certa aversão aos homens de estudo e ao "espírito" -, são os possíveis tipos sociais afinados com as personalidades dos algozes e carrascos, necessários às políticas totalitárias. Inclusive, nas palavras de Adorno, o nazismo explorou essa dupla hierarquia muito presente, inclusive, fora das escolas, assim incitando o repúdio e o desprezo das massas pelo trabalho intelectual, ao mesmo tempo, propiciando um clima social para a constituição de sujeitos bem adaptados e eficientes, sempre prontos para cumprir as ordens - o caráter manipulador descrito por Adorno na pesquisa "A Personalidade Autoritária", obra também citada nos ensaios de Adorno sobre educação.

Como Adorno mesmo afirmou: "A pesquisa pedagógica deveria dedicar especial atenção à hierarquia latente na escola". E dessa afirmação, destaco a sua pertinência e relevância para elucidar o problema do bullying, ou seja, a pesquisa psicológica e sociológica atuais deveriam se voltar para aquilo que Adorno há muito tempo já havia indicado nas suas "especulações pedagógicas": a de que a chave para a desbarbarização de pessoas reside na transformação decisiva da sociedade e em sua relação com a escola. O nosso processo educacional e civilizatório, que é delegado aos professores e mestres, orienta-se para o nivelamento no sentido de que as idiossincrasias e as "naturezas disformes" devam ser eliminadas nos alunos. Não obstante, tal tipo de educação pela "dureza" e pautada exclusivamente na adaptação do sujeito torna legítima as perseguições contra os colegas que apresentam tais "traços disformes" (aqueles destoantes do modelo de pessoa bem adaptada), ou algum tipo de fragilidade. A escola é também local de violência e punição quando deveria ser um ambiente que pudesse formar pessoas resistentes a qualquer tipo ou traço de violência. Somado a isso tudo, cada vez mais as pessoas (pseudo) formadas no seio das sociedades tecnológicas e da indústria cultural têm se tornado avessas ao conhecimento teórico e a determinados assuntos do "espírito".

Para o assunto "bullying" e "violência na escola" - diferentemente das abordagens de especialistas sobre o tema que prestam serviço à publicidade sensacionalista - deve ser questionado: o que há por trás do excesso de informações e de exploração sobre o "fenômeno bullying" encontrado no mass media? Por que hoje virou moda falar sobre o assunto? Estamos presenciando maior violência e abusos por parte de jovens e crianças hoje, do que antigamente? O que o termo técnico "bullying" visa ocultar? Ora, humilhações e demais brincadeiras de mau gosto, ou extremamente violentas, sempre ocorreram em instituições educacionais entre crianças, e/ou professores e alunos, presenciadas nos ritos de iniciação entre jovens em formação e nos abusos cometidos em sala de aula. Mas tal tipo de relação regredida não deveria jamais ser "naturalizada", ou reduzida aos problemas de personalidade dos sujeitos envolvidos, como é muito comum hoje escutarmos nas análises de especialistas voltados ao tema (por exemplo, existem estudos que apontam tanto a personalidade do aluno que comete violência e abusos contra colegas, quanto as características de quem se torna vítima de bullying. Em que pese a objetividade desses estudos, a questão é a de que aspectos psicológicos envolvidos na violência escolar não são suficientes para tratar do problema). O termo bullying utilizado e disseminado pelos experts torna-se mais um "produto cultural" a ser consumido pelos agentes educacionais, que acaba impedindo a conscientização e a reflexão mais crítica por parte dos mesmos sobre o legado de representações e práticas violentas que a escola carrega consigo, tendo em vista a nossa cultura prenhe de manifestações bárbaras.

Sobre a necessidade da força física para a dominação social, ainda muito presente nas sociedades liberais e democráticas, Adorno apresenta no texto "Tabus..." a existência da tradição de punições e de castigos físicos que fazem parte da história das instituições educacionais, o que contribuiu para a imagem do professor como "carrasco" e como "tirano" (o arcaísmo presente na profissão de ensinar). Mas o que é importante destacar é que os resquícios de punições ainda imperam na memória escolar, ao lado do exercício da força bruta e das humilhações psicológicas - essas, agora, mais presentes no quadro de relações estabelecidas nas escolas entre mestres e alunos -, indicando que nossa cultura é pautada na violência, e que nossas leis e relações sociais vigoram pela ameaça. Na literatura, é importante citar o livro O Jovem Törless (aqui comentado pelo mentor deste blog, meu amigo Ravel), bem como a obra Professor Unrat, de Heinrich Mann, comentada por Adorno no texto que, apesar de obras distintas e as especificidades de cada uma, retratam o tema do "clima pedagógico" perpetuador de relações autoritárias e regressivas entre os sujeitos: a manifestação do preconceito delirante, a opressão, a tortura e o genocídio.

Caberia, então, pensarmos o que ocorre nas nossas escolas hoje que, dolorosamente, crianças, jovens e professores têm experimentado. Alguns fatores podem ser levantados: as relações afetivas permeadas de ambivalência entre professores e crianças são sufocadas, bem como a dissolução de "autoridades esclarecidas", no sentido adorniano; os tabus contra o magistério (representações inconscientes) ainda vigoram e não são trabalhados ou ditos explicitamente nas relações entre os escolares; e mais outros elementos graves, tais como o preconceito de classe, etnia, entre outros, sabemos que se encontram bem presentes nas escolas, principalmente em se tratando de jovens e crianças pobres (aqui não citamos o repúdio que as autoridades brasileiras têm pela educação infantil e fundamental que, é claro, se reflete no interior das escolas, contribuindo para tais relações doentias). Nesse ambiente no qual o medo e a angústia não são trabalhados - lembrando que tais sentimentos estão à altura daquilo que a nossa realidade social nos exige -, seus efeitos deletérios só podem de fato se manifestar, nas piores formas possíveis: nos massacres e nas diversas formas de violência.

domingo, 17 de julho de 2011

Da vida, da morte: contradições envoltas no tema


Há um texto muito instigante de Herbert Marcuse intitulado "A ideologia da morte", publicado na década de 60, que me ocasionou algumas reflexões importantes, à revelia da cultura contemporânea que gera pessoas avessas ao tema (à morte e à questão da mortalidade), cujo assunto tem sido transformado em tabu, apesar de todas as contradições objetivas envolvidas no tema em questão. Na mesma discussão desenvolvida nos últimos capítulos de "Eros e Civilização" sobre a morte, Marcuse retoma o tema sobre a possibilidade de numa sociedade livre e mais justa, o conteúdo e a qualidade da morte humana individual serem modificadas, até chegar ao ponto do homem poder escolher a sua própria forma de morrer estabelecendo uma forma diferençada de se relacionar com a morte. Nesse texto, Marcuse apresenta uma abordagem histórico-filosófica da morte no ocidente - desde a condenação de Sócrates -, passando pelo cristianismo, apontando a questão biológica da morte, até chegar ao conceito freudiano de "pulsão de morte". Das idéias que ora consolidam a morte como algo "metafísico e transcendente", e/ou que ora confirmam a morte como "natureza" - destino pelo qual o homem deve necessariamente se curvar -, o autor então confronta tais idéias de morte(ou ideologias introjetadas pelo homem verificadas, inclusive, na modernidade)com as questões políticas e econômicas de acontecimentos históricos do século XX.

Com o enfraquecimento e a neutralização da religião, ao lado de uma tendência cada vez mais forte de empobrecimento e de mercantilização de bens simbólicos e culturais, a atitude do homem diante da morte é a mais conformista possível e com teor altamente punitivo, associada à introjeção do sacrifício individual - para atender interesses econômicos -, na qual a idéia de morrer é vista como via de "libertação" de uma vida sofrida, pautada no sacrifício, ao mesmo tempo em que o medo da morte - essa, vista como vergonhosa e ameaçadora - tem se tornado cada vez mais exagerado. E tal situação paradoxal chega ao máximo quando se verifica a naturalização de mortes de vidas consideradas "descartáveis" - os pobres, os miseráveis, os considerados bandidos e toda uma população alvo de ataques de guerras -, cuja justificativa se dá pelos critérios estabelecidos pela racionalidade econômica e instrumental dominantes. Tal situação agravante pode ser traduzida nos seguintes termos: as pessoas "mantidas vivas" pelo sistema são aquelas ativamente envolvidas na vida produtiva econômica, enquanto uma massa de pessoas que reivindicam sua sobrevivência tem gerado aborrecimentos. Mas o ponto crucial do texto é quando Marcuse levanta a idéia da morte, considerada "natural", na realidade, ter se tornado "segunda natureza" na nossa cultura beligerante, posto ser objeto de manipulação psíquica de grupos poderosos que instilam nas pessoas a idéia de que a morte tem sua característica de "fatalidade" e de "destino". Quando uma mãe perde um filho na guerra, ou quando um acidente nuclear acontece provocando o morticínio generalizado, as pessoas se curvam e dizem "sim, é preciso que alguns morram para que o equilíbrio geopolítico e econômico se restabeleça", bem ao gosto de uma sociedade que recusa dar sentido e significado a uma vida desejável! "Auschuwitz é mais do que uma alegoria na nossa cultura", como afirmou Adorno, pois presenciamos novas formas de campos de concentração.

Mas sobre a tese de que a "ideologia da morte" pode ser superada, levantada por Marcuse, caso as condições objetivas sejam transformadas, o autor também levanta a questão da necessidade de meios tecnológicos para tal. De fato, já alcançamos esses meios pelos quais verificamos o aumento de expectativa de vida das pessoas. Mas como o autor mesmo discute, nesse excesso de bens de consumo e de capitalização mundial, a vida prolongada sob condições cada vez mais injustas de existência não é mais tão desejável. O acesso e o "direito" ao prolongamento da vida é para poucos e, mesmo assim, dentro de condições na qual a desejável "imortalidade" não tem sido tão prazerosa e digna de ser vivida. Se, por um lado, o prolongamento da vida gera um comportamento que acusa a morte e o envelhecer como algo humilhante e vergonhoso - ao mesmo tempo em que a morte continua ainda sendo uma promessa de "liberdade", já que ainda não alcançamos uma vida terrena e material tão justa e prazerosa assim -, por outro, o "assassinato" de anônimos e de outros que não fazem parte dos grupos "eleitos para a imortalidade" é exibido nos meios de comunicação de massa de forma espetacular.

Ora, tristes conclusões podemos retirar desse quadro também apontado por Marcuse, cujas idéias têm implicações muito mais sérias do que imaginamos. O homem que tende a fugir da morte por horror a ela, negando a questão da mortalidade, assim criando subterfúgios para se desviar do "destino" biológico - determinado e mediado socialmente -, acaba por perder sua "humanidade", já que, como Borges (citado por Bauman ) escreveu no conto "O Imortal", a morte derrotada também derrotaria o homem ( o sentido de todas suas proezas, lamúrias, etc); Mas o desejo de não morrer, por sua vez, entra em conflito com uma existência empobrecida de uma vida que traiu todos os sonhos e promessas e que, assim, impele os homens ao desejo de morte como "promessa de liberdade" e como consolo - e a morte forjada socialmente, maqueia-se "ideologicamente" como destino natural. E uma grande maioria que, considerada inadequada e excluída dos meios que poderiam prolongar a sua existência (saúde, emprego, educação) numa sociedade marcada pela desigualdade social, é descartada do direito de viver. Como Marcuse afirmou, a morte está longe de ser um dado da "biologia", da "natureza", ou algo que preserva seu sentido "transcendental" consolidado por toda uma tradição de pensamento filosófico, ético, político e moral (também objeto de manipulação para a preservação do status quo). O homem foi expropriado de seu direito de morrer porque a vida também lhe foi expropriada. Junto à reivindicação de uma sociedade justa a morte perderia seu caráter medonho, ameaçador e punitivo, mas, "entre o céu e a terra" há muitos mistérios do que jamais podemos conceber... agora, só resta a todos os homens poderem desvendar esses mistérios e realizar os seus sonhos na terra.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Um giro magnético por São Paulo


Los Magnéticos, incendiando o Cerrado e fazendo a vaquinha babar

Fazer "divulgação de eventos" não é exatamente um dos objetivos deste blog, mas eu vou me sentir muito ingrato se não ajudar a noticiar a miniturnê pelo estado de São Paulo de uma das minhas bandas bigfieldenses preferidas: a às vezes doce e sempre vigorosa Jennifer Magnética.

De fato, uma das marcas dos magnéticos é aliar a delicadeza melódica, a sensibilidade e inteligência poética e a pegada rocker; então, se algumas letras e melodias lembram Los Hermanos ou Radiohead - sem falar numa alegria algo beatle -, a sonoridade tem muito de Led, que aliás eles emulam numa fusão algo insólita com... não, não: tem que ouvir pra crer.

E não que falte unidade entre som e letra na J.M. Tanto que os três - o batera Diogo Zarate, o guitarrista Jean Stringheta e o baixista Rodrigo Faleiros - compõem e cantam, com igual talento e sem prejuízo do virtuosismo instrumental. Quando fui cumprimentar o Diogo no festival acima documentado, e descobri que ele só podia contar com o auxílio de um olho pra fazer tudo o que faz com a voz, os pés e as mãos, me convenci de vez: esse cara é um ser mitológico!

Campo Grande não tem praia, mal tem rio e, a bem da verdade, nem campo tem tido ultimamente. Mas tem um céu imenso e muitos sons vagando entre ele e esse chão sofrido. Sim, há mais mistérios... e, muitas, muitas forças magnéticas entre o céu e a terra.

Quem estiver por perto, não perca. E faça "a crítica" se quiser, porque eu sou fã incondicional dos caras.

16/07 - São Carlos - Armazém Bar - junto com a banda Lisabi

17/07 - São Paulo - CAFESP - Domingo na Casa

18/07 - São Carlos - Programa de rádio Independência ou Marte

19/07 - São Paulo - CAFESP - Ao Vivo na Casa

20/07 - Bauru  - Shiva Bar

Aqui, curtindo o friozinho paulistano por antecipação

sábado, 9 de julho de 2011

Ainda em torno de Törless, ou do que (não) o atordoa


Este post tem algo da situação autopunitiva de um mea culpa. Afinal, ele advém de uma espécie de "retorno do recalcado"; o retorno, na verdade, de um "desprezado", sendo que as aspas sublinham não só a leviandade como a precipitação, sem falar na artificialidade, do gesto. Pois a verdade (e eu espero que o Tião, defensor ardoroso do Roberto Schwarz, leia isto) é que eu devo muito aos "sociólogos da literatura" para me referir a eles como fiz em minha resposta ao comentário de minha querida mestra, Suzi Frankl Sperber, no post anterior. E a grande - e pior - verdade é que se eu lhes dedicasse mais tempo e atenção não teria pago o pequeno ou grande "mico" que paguei, no texto referido, de tentar uma articulação exterior ao meu assunto nos post scriptuns (ou post posts) sobre os estudantes pobres, sem me dar conta de que essa articulação se dá, de certa forma, no interior do próprio objeto.

Minha própria mestra me alertou que o tema pedia mais desenvolvimentos; e embora eu jamais tenha tido a esperança - e, num post bloguístico (e é este, certamente, um de seus maiores benefícios), sequer a vontade - de esgotar qualquer assunto, a verdade é que ainda havia coisas por demais imprescindíveis a serem ditas nesse caso, e uma delas é isto: aliás, antes de tentar "definir" ou "explicar" - na verdade, generalizar - "isto", deixem-me tentar apresentá-lo na forma de uma objetividade conceitual mínima (ou seja, na forma de uma conceitualidade minimamente convincente quanto à sua "objetividade"), dizendo, apenas, que o inferno de Basini tem um explícito e inegável atrelamento econômico: pois se são seus empréstimos, dívidas e furtos que o tornam vulnerável aos ritos sinistros impetrados pelos colegas...

Mas o meu "antes" é um aquém, um deter-me: não vou, de fato, me perguntar sobre os "possíveis sentidos mais amplos" disso, ou seja, se determinados elementos do romance permitem ver Basini como um "representante" ou mesmo um símbolo de alguma condição social; uma "condição", no caso, "intermediária" (pensando, inclusive, nas relações do personagem com as pessoas pobres, mais exatamente uma prostituta, da aldeia). O fato é que, qualquer que seja o volume de seus gastos, os recursos de Basini não são suficientes para supri-los. Ainda que num nível puramente individual, portanto, e ainda que de forma relacionada a supostos "desvios" ou "patologias", Basini vive uma situação de precariedade e dependência econômica que o conduz, ainda que na forma de algum "pretexto", ao sofrimento. Basta, então, indicar que, conscientemente ou apenas por obra das frestas inevitáveis em um produto tão mergulhado no real, essa dimensão do real se infiltra aí: a condição de uma sociedade de classes, e, portanto, de alguma forma, da luta de classes.

Para ser sincero, parece-me - mesmo com o vexame do atraso da percepção (mas antes tarde do que nunca) - difícil supor que Musil fosse alheio às possibilidades de sentido (ou seja, de relações) aí implicadas; e isso porque o próprio Törless se mantém quase alheio (é quase que por instinto, ou pela dimensão inconfessável do sentimento que grassa nele, que ele finalmente o "salva") à condição humana de Basini; não na generalidade de sua individualidade humana, mas na complexidade e especificidade - inclusive social - desta. Ou melhor, ele a vê, sente (e/ou pressente) e mesmo vive, mas como quem olha e tenta dar sentido aos reflexos dela e sua degradação em si mesmo; vive-a, portanto, como um laboratório, reiteremos, para sua "radiografia". O que eu escrevi antes a propósito de Törless apenas vislumbrar "os indizíveis" em si é, portanto, uma meia verdade: pois se ele praticamente inquire o outro sobre a essência do não-ser - e, no entanto, sequer cogita perguntar "quem tu és?"; quem dirá lhe pedir que lhe conte sua história.

Essa anulação prévia do outro - e um outro, diga-se logo, a quem se ama - possui alguma dimensão social para além ou aquém das determinações mais amplas da forma e da representação literárias? Não sei, mas tenho agora a convicção - e de que sobre isso Musil nos alerta cabalmente, a nós, "intelectuais" - de que o conformismo (o, digamos, "conformismo filosófico") do velho Törless ("um homem de espírito refinado e sensível", "uma dessas naturezas de esteta e intelectual que sentem paz observando as leis e seguindo em certa medida a moral da sociedade, pois isso as exime de terem de refletir sobre as coisas grosseiras que ficam muito abaixo das sutis emoções espirituais") é um conformismo de classe.

E será que eu estarei extrapolando de novo o âmbito de meu objeto se lembrar o quão triste e sintomático (de algo, seja lá o que for) é o fato de que essa mesma palavra distintiva que encerra o parágrafo anterior ainda designa o espaço de nossas "ações pedagógicas", como a nos lembrar o quanto os lugares de poder - as inferioridades e superioridades - estão implicados neles? O jovem Törless, não se esqueça, é uma espécie de "romance escolar".

Mas puxa vida! Férias são sagradas, ou pelo menos deveriam ser. Se pudesse eu cantaria agora, com o... Herva Doce, Menudo?: Vamos a la playa, ô, ô, ô, ô, ô. Mas me contento com The Clash em surf music, que no entanto exige (até pela ausência da letra) o complemento do próprio The Clash. E nem vou criticar Joe Strummer, que morreu mas ainda vive, e sua velha trupe, o que além de fácil seria leviano para quem os adora tanto (situação não muito diferente, bem se vê, da relativa aos "sociólogos da literatura"). Bem, pelo menos desses (então) jovens rebeldes com calças (rasgadas...) e literalmente "de primeiro mundo" nenhum goiano paraguaio pode dizer que são assim, tão "alienados".  


Charles Does Surf (surf music tribute to The Clash)

The Clash - Combat Rock

(O disco acima tem a, digamos, "Holiday in Camboja" do The Clash, "Straight to Hell"; mas vejam como sou simpático e dou preferência a este rito, e não ao ainda mais infernal dos Dead Kennedys.)

Ah, sim: no fundo, no fundo, a culpa deste post é de minha amiga Fabiana, que, por mera e desprevenida compaixão, me pediu para não abandonar "meus leitores" nas férias. O que, espero, significa que eu terei pelo menos uma leitora. Em todo caso, prometo que o post de "volta às aulas" será bem diferente.



Mas (calma, calma, Eberaldo) como é que eu menciono The Clash sem linkar com esses covers brazucas, o segundo, aliás, bigfieldense?:
Redson - London's Burning
(O Sonante Filho Vermelho é o líder do Cólera, um dos muitos The Clash brasileiros, além de "ter" essa banda cover dos clashes.)
Jennifer Magnética - Should I Stay or Should I Go
(Vale o mesmo para a J.M., eu ia dizer "no contexto de Campo Grande", mas por que excluir Campão desta terra em brasas cheia de porteiras?)

  

domingo, 3 de julho de 2011

Musil, Törless e a radiografia do indizível


Este é o meu primeiro post com tema literário, e eu não posso deixar de me sentir grato pelas meias-coincidências que determinaram seu assunto. Pois o livro de que ele trata - o último que li, como se diz, por mero diletantismo - foi adquirido em circunstâncias quase inteiramente fortuitas, numa banca de livros usados, com o objetivo de tornar menos tediosa uma viagem de ônibus, e no entanto ele se me prestou (perdoem o preciosismo) a uma pequena mas importante catarse intelectual e emocional. Mais exatamente, essa leitura e este post compensam, em parte, e por conta de certas relações temáticas, a desistência de um velho projeto, a saber, um trabalho mais amplo sobre o filme Elefante, de Gus Van Sant.

O jovem Törless é a primeira empresa literária de vulto do escritor austríaco Robert Musil (1880-1942), embora apenas uma mostra mínima do talento que viria a aflorar no imenso (e inacabado) O homem sem qualidades. Curto, denso, um pouco menos cuidado na estruturação do enredo que na apresentação, aliás mais descritiva que narrativa, dos conflitos (sobretudo mas nem de longe apenas interiores), Törless é uma espécie de romance de formação condensado, temporal e espacialmente restrito aos dolorosos aprendizados (ou, talvez, não-aprendizados) do protagonista nos anos vividos em um Seminário para filhos de famílias endinheiradas.

Bem, devo alertar, como nas páginas da Wikipédia, que este texto contém revelações do enredo - sendo que o livro, que vale a pena ser lido, pode ser encontrado em muitos sebos, inclusive virtuais.

As experiências de Törless se ligam intimamente às de dois colegas, Reiting e Beineberg, e mais ainda - e mais intimamente ainda - às de um outro, o frágil e "desprezível" Basini, que os primeiros submetem a frequentes sessões de humilhação e tortura, física e psíquica. Daqueles três, entretanto, para apenas um deles essas sessões sinistras (não raro interpretadas como uma antevisão do nazismo) constituem exercícios de um mero poder cruel e dominatório. Tanto para o "filosófico" Törless quanto para o "budista" Beineberg são outras obsessões de domínio que estão em jogo, obsessões ligadas à própria estrutura do real, e seu conhecimento e experiência.

E se Beineberg busca fazer da mente e do corpo daquele "outro" um instrumento de comprovação de suas fés ou teorias místico-religiosas, o que Törless busca, mas no âmago psíquico, ou seja, na alma desse corpo-consciência massacrado - e não menos inutilmente que seu colega -, é um vislumbre, um sentido ou o que quer de luz que ele possa trazer, do âmago mesmo de suas terríveis experiências, para as dúvidas "cruciais", ou seja, os paradoxos que o aluno "sensível" e aplicado vê, obsessivamente, pairando ou, antes, vicejando, no fundo mesmo de quaisquer certezas, de qualquer tipo.

Um fundo onde tudo o que é razão, moral, entendimento, valores ou o que quer se vincule a um Ideal, uma Lei ou o que quer que se conceba como superior se deixa flagrar em seu conluio com uma vida, uma matéria, sempre com seu quê de sórdida, suja e, claro, falha e mortal. Um fundo onde tudo se dissolve na estrutura vertiginosa, paradoxal, da mera e absurda existência. Mas em seu próprio fundo, o próprio Törless somente vislumbra o quanto viceja o indizível. Ou melhor, os indizíveis: medo, desejo, desamparo.

Tudo isso - ou apenas isso -, de minha parte, para extrair daí uma moral pedagógica, ou, quiçá, uma lição, quem dera até um programa. Sim, pois o que talvez mais falte a Törless (cujo futuro medíocre, desvelado no final, marcará sua distância da instância autoral) e a Beineberg, e mesmo ao torpe Reiting, e mesmo ao "coitado" Basini - ou melhor, uma das poucas ou muitas coisas que talvez a escola pudesse fazer para compensar todos os abismos (sociais, morais, existenciais, metafísicos, "relacionais") que se cavam na alma das pessoas, seriam aulas de paradoxo, aulas de absurdo, de vertigem. Isso que nos faz sentir, antes que nos sintamos tentados a comprovar e/ou expurgar isso em outrem, que também somos algo semelhante a um nada, ou uns filhos do nada.

"Aulas de poesia!", alguém me sugerirá. Mas não, porque definitivamente o paradoxo, a vertigem e o absurdo não podem ser apresentados como instâncias, atributos, propriedades, de qualquer privilégio posicional, actancial, pragmático ou o que seja. Pois se eles pertencem e a eles pertence o real: o mísero real nosso - ou melhor, deles (menos os poetas que os, diz-se, sem-poesia) - de cada dia.

Porque o nosso, bem, ao menos para alguns de nós há os terços de férias. O que aliás me lembra que este é um post de Boas Férias, vindo a calhar, portanto, seu contexto livresco e escolar.

Vêem que rimar é quase uma sina? Mas deixo para outro dia a piada do Joãozinho.

E viva o Joãozinho, e vivam Basini, Reiting, Beineberg e Törless, e, claro, o imenso Musil, o melhor Joyce que uma Áustria pré-nazista poderia parir, e que muito ainda ensina. E vivam as férias!


P.S.1: Encontrei o desenho acima, acreditem, num site universitário - no da UFMS de Bonito, é claro. (Mas também poderia ser de Corumbá - é claro.) E viva - e Deus guarde, porque de nossa parte não sei não - Bonito (e Corumbá, e etc.). (Com um abraço aos tios e tias e primos e primas, inclusive ao Breno, que pertence a esses dois paraísos ameaçados.)
P.S.2: Ainda sobre Bonito (e Corumbá), como dizem "os que podem", é "uma boa pedida".
P.S.3: A título de nada: achava muito grotesco, quando estudante, a maior parte dos professores não saberem que muitos alunos "não podem nada" nas férias. Ultimamente, tampouco os professores andam "podendo" muito, mas muitos continuam sem saber.