VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Esquerda e direita, direitos e deveres, partidos e poderes...

Um dia de festa, outro de conflitos e outro de ressaca: pode-se resumir assim, em linhas muito gerais, é claro,  os três dias de Ato em apoio à "Revolta do Vinagre" (ou dos 20 centavos) iniciada em São Paulo. Assim como em outros lugares, as manifestações não terminaram, com desdobramentos que vão desde a realização de várias outras manifestações à importantíssima presença de manifestantes nas sessões da Câmara Municipal. Mas tanto local quanto nacionalmente o quadro é confuso. Demandas de toda ordem se unem e se conflitam, e só agora, com as tomadas de posição um pouco mais consistentes do Governo Federal, as águas começam a se aclarar, e é possível distinguir as correntes que querem as reformas profundas e estruturais com as quais o Governo começa a acenar - ainda timidamente - das que querem apenas bagunçar o coreto (em si mesmo já desafinado, é verdade).

Digo timidamente porque ainda há muita coisa fora das pautas que se apresentam. Ninguém ou mal se fala, por exemplo, em reforma agrária ou redução da jornada de trabalho, até porque o "povo" que toma as ruas não é propriamente o que se pode chamar de "povão": as massas trabalhadores e camponesas. E ninguém se lembrou do que acontece agora no Xingu, por exemplo. Quando se reivindica o poder para o povo, geralmente se esquece que esse "povo" está longe de ser uma entidade coesa e sem interesses díspares. O mesmo vale para a falácia de que todos os partidos são iguais e de que é possível ir para frente (ou para trás) sem guinar um pouco ou um tanto mais à esquerda ou à direita...

Mesmo assim, o que os atos produziram até agora, mesmo levando em conta o perfil revanchista e reacionário de alguns grupos, foi basicamente positivo. A disposição de Dilma Rousseff para peitar a REFORMA POLÍTICA que precisa ser feita com toda a urgência e é um divisor de águas entre as disposições efetivamente transformadoras e as reacionárias. E se os trabalhadores saírem às ruas certamente será em sua defesa. O impasse, agora, está nas classes médias e estudantis: rebeldia ou carnaval?

O argumento de que Dilma está se sobrepondo ao Congresso ao propor um plebiscito para viabilizar a Reforma ou para sedimentar um "gople" é o mais hipócrita possível. Queremos mudanças efetivas ou não? Que medo é esse de um fórum democrática e legitimamente constituído?

Fotografei quase todos os cartazes abaixo no primeiro de dia de Ato em Campo Grande. Há causas amplas e pontuais, e concordo com boa parte delas, embora nem todas estejam claras para mim e, suponho, para muita gente. Um grupo de advogados que alertava contra a submissão do Judiciário aos outros poderes, por exemplo, questionava o poder, segundo eles, excessivo que se confere a procuradores por vezes muito jovens, e contra a qual se ergueria a PEC-37.

Deixei de fotografar alguns cartazes, como um que defendia a redução da maioridade penal e outro pedindo "Fora Dilma". Mas me arrependi, pois, por mais que discorde dessas ideias, o álbum abaixo se pretende uma crônica, não completa - nem imparcial, porque isso não existe -, mas minimamente representativa do dia 20/06.


domingo, 9 de junho de 2013

Terra Vermelha e a voz que resiste

Osvaldo (Abrisio da Silva Pedro)
Assisti ontem pela terceira vez a uma exibição do filme Terra Vermelha, do cineasta chileno (de nacionalidade italiana) Marco Bechis. A primeira, no hoje extinto Cine Cultura de Campo Grande, me deixou a convicção de que se tratava de um filme fundamental, cuja abordagem sóbria e corajosa de um tema dramático e fulcral ia na contramão da “cosmética da fome” da chamada Retomada do cinema brasileiro.

A segunda, que ocorreu por minha próprio sugestão no IV Encontro de Estudos Literários da UEMS ocorrido no mês passado, relativizou um pouco essa impressão, graças principalmente ao debate conduzido pelo professor Volmir Cardoso Pereira e no qual tomaram parte alguns alunos indígenas da UEMS, inclusive o líder Terena Sérgio da Silva Reginaldo. Enquanto o primeiro sublinhou a presença de alguns clichês cinematográficos e de feição romântica, os segundos indicaram o que haveria de verossímil e inverossímil no retrato dos índios. Entretanto, diga-se logo, nenhuma dessas pessoas negou o valor e a importância do filme de Bechis, cujos acertos todos reconhecem muito mais presentes e marcantes que os clichês e as inverossimilhanças, como o pequeno romance entre Osvaldo, o jovem aprendiz de xamã, e a filha do fazendeiro, uma história com ares de telenovela mas desde o início fadada a um fim melancólico. 


Cacique Nadio (Ambrosio Vilhalva)

Aliás, já é hora de explicar que Terra Vermelha é um filme de ficção baseado nas dramáticas condições de vida (e morte) dos índios Garani-Kaiowa confinados em pequenas e miseráveis reservas na região de Dourados e em sua luta pela reconquista de seus Tekohas: seus lugares de origem e cultura material e espiritual, como explicou o Patrik Adam Alves Pinto, militante da causa indígena e funcionário da Funai, que debateu o filme na exibição de ontem.

Pois bem, e justamente a exibição de ontem – promovida pelo Projeto Cinema (d)e Horror da UFMS – consolidou aquela minha convicção, e com ela a de que Terra Vermelha constitui um verdadeiro aliado (o Coletivo Terra Vermelha é uma prova disso) na luta pelas causas indígenas; mais especificamente, na necessária conscientização da opinião pública quanto à gravidade, amplitude e importância dessas causas, que ultrapassam em muito a realidade indígena. A “questão rural”, a premência de uma reforma agrária efetiva e responsável, são coisas que dizem respeito à possibilidade de um desenvolvimento social e econômico que tenha outra lógica que não a do consumismo predador e crescentemente catastrófico que predomina, aliás, literalmente avança hoje – aliás, há longos cinco séculos – no Brasil.
 

Ademilson Concianza Berga (Ireneu)

Não que o filme tematize sociologicamente isso, mas os dramas que ele mostra propiciam, talvez, o início de uma sensibilização para isso. O gesto do cacique que come um punhado de terra em resposta às declarações de propriedade e pertencimento do fazendeiro são uma resposta, também, ao mundo dos homens, mulheres e crianças que já não podem andar descalços, seja porque o asfalto é muito duro, porque os poucos espaços de terra na cidade estão ou nos parecem imundos ou porque é potencialmente humilhante não ostentar um tênis (ou um celular) da moda. Um drama psicossocial, esse último, que entre os próprios indígenas se soma ao confinamento, o trabalho semiescravo, os assassinatos, o alcoolismo... Nada, decerto, a ver com “nosso mundo”.

Mas justamente ali, no mundo “deles”, onde tudo isso é tão pior, a vitória do jovem herói sobre si mesmo e os maus espíritos tem a força de um efetivo ato de resistência: a mesma que se manifesta, hoje, na decisão dos índios Terena de continuarem exigindo, mesmo sob risco de mais derramamento de sangue, a demarcação de suas terras.


Alicelia Batista Cabreira (Lia)

É verdade que, como sublinhou Patrik Adam, Terra Vermelha exige um trabalho de contextualização histórica e social para a compreensão de muitos elementos da realidade que ele apresenta, como o alcoolismo e a suposta esquiva ao trabalho dos indígenas. Por isso mesmo, seria extremamente oportuno que se editasse e disponibilizasse na internet e por outros meios uma versão do filme com uma contextualização prévia desse tipo – e esse post é também um convite a que se faça isso.

Para além disso, no entanto, Terra Vermelha é um filme que, na súmula de suas qualidades e defeitos, possui um mérito extraordinário: o de nos apresentar e nos fazer aliados de um novo herói: um herói que não é, nem de longe, o índio puro e idealizado d’O guarani (e muito menos a índia passivamente sofredora de Iracema), e que talvez nem seja propriamente – ou apenas – um índio, mas, antes, uma voz: a voz que diz “Eu ganhei, você perdeu”, e que diz que resistir, exigir dignidade e justiça, são atos necessários e possíveis. Para “eles” e para nós, que no fundo estamos no mesmo barco, porque é a mesma questão fulcral que se coloca para todos: em que mundo, em que lugar, em que cultura material e espiritual – em que realidade humana – vamos criar ou estamos criando nossos filhos?

Bem, já se pensa em colonizar Marte, e outros vêem seus “Tekohas” em praias ou lugares piores da Flórida, mas não são esses, certamente, que amam a Terra, menos ainda nossa sofrida terra em brasas.

 

Link para o filme completo no youtube:
Acionar legendas (o filme é em boa parte falado em guarani) no segundo ícone à direita da barra de ferramentas do vídeo.

sábado, 8 de junho de 2013

Luta Terena: pela Terra, pela Humanidade



Participei ontem das manifestações em prol da luta dos índios Terena, outros povos indígenas e movimentos sociais diversos (com destaque para o MST e o Coletivo Terra Vermelha, aos quais se somaram a CUT, os trabalhadores da construção civil em greve e outros) pela demarcação das terras indígenas e pela justiça no campo. Mas ao invés de escrever uma crônica sentimental e talvez banal desse evento histórico (ainda que o Jornal Nacional não o tenha noticiado, apesar de ter mostrado a marcha dos fazendeiros no mesmo dia), acho mais interessante publicar aqui o Manifesto redigido pelo Movimento Acadêmico da UEMS-CG sobre a questão. Tomo a liberdade de ilustrar o texto com fotos da referida manifestação, tiradas pelo colega e amigo Volmir Cardoso Pereira.
 
Campo Grande, 06 de Junho de 2013.

O Movimento Acadêmico da UEMS - Unidade Universitária de Campo Grande -por meio deste documento expressa seu apoio à luta dos indígenas pela demarcação de terras e pelo respeito aos seus direitos fundamentais. Nosso apoio se estende, também, às lutas dos povos da terra, e não se restringe ao estado do Mato Grosso do Sul; mas abarcam todas as lutas das minorias oprimidas pelo poder.

A expropriação e aculturação de nossos companheiros indígenas é fato tão remoto quanto suas consequências. Submetidos à lógica do sistema capitalista e às suas contradições e injustiças, hoje, compõem nossa sociedade seviciados e obrigados a desempenhar nessa mesma sociedade, o papel de cidadão, imposto pelos modos de produção de vida das divisões de classes.

Privados de seus valores e de sua cultura, e esforçando-se para manter minimamente sua estrutura coletiva e material, são mais uma vez, vítimas de uma dominação colonial, tão passadista na história, entretanto pulsante na práxis cotidiana. Não bastando a pseudo ideia de inclusão que as instituições imprimem na sociedade, com uma plasticidade repleta de compreensão e compaixão, o indígena está muito distante dessa pseudo inclusão. Não obstante, essa mesma "inclusão" é um expediente paliativo para anular a reflexão do que deveria ser reconhecimento, e não simplesmente uma atitude de inclusão.

Se é verdade que contemporaneamente a preocupação com nossos companheiros é legítima, e que para tanto, as instituições sociais desenvolvem políticas voltadas ao seu bem estar e que são tratadas por órgãos competentes; então, qual seria a causa de tanto descaso das nossas instituições jurídicas e governamentais no que tange a causa indígena? Se, nossos companheiros indígenas estão continuamente sendo "incluídos" ao sistema político e social vigente, por que, nessa altura do desenvolvimento ainda continuam sendo expropriados de seu bem fundamental que é a terra?

A luta é de classes, e os estratos sociais mais abastados se dão o direito de lutarem pela perpetuação da desigualdade, sem a menor reflexão. Lutam pela acumulação de seu capital sob o signo do progresso e do esforço. Lutam pelas suas terras. Mas, que terras? As terras que garantiram pela usurpação?

Não causa espanto que esse segmento social que detém o poder maior, o capital, aja ignominiosamente. Afinal, é o capital que institui direitos... Para não esquecermos o que Marx já anunciava: "O Estado é o balcão de negócios da burguesia". É esse segmento social, por meio de seu poder monetário, que convenciona as regras para a sociedade. As classes menos favorecidas, põem em andamento essas convenções tendenciosas, e crêem na ideologia do "patrão". Todavia, não se pode perder de vista a manipulação ideológica que encarcera as reflexões. É muito conveniente não refletir, e adotar a perspectiva do "vencedor", daquele que chegou à prosperidade por seus méritos. Porém, esse vencedor é o integrante social "bem-relacionado"; suas necessidades sociais são forjadas para seus propósitos, e passam a ser modelos para os outros estratos sociais, o que garante a conveniência e a barbárie universais.

Nós, estudantes da UEMS de Campo Grande e integrantes do Movimento Acadêmico, hoje mais
capacitados a compreender esse mecanismo de dominação e de alijamento das classes menos favorecidas, consideramos lamentável a opressão e o descuido social de nossos representantes governamentais. Lamentamos, também, a ignorância e o conformismo social dessa sociedade alienada pelo capital, que adere às ideologias do poder; o mesmo poder que escraviza e oprime cada um de nós.

Aos nossos companheiros indígenas, povos da terra, declaramos nosso apoio, não apenas sob o signo da inclusão; mas visceralmente, sob o signo do reconhecimento da luta de cada um de nossos colegas indígenas, que compartilham em nossa comunidade acadêmica a busca pelo conhecimento e desenvolvimento crítico dos mecanismos que regem nossa história como sujeitos políticos, sociais e materiais, e acima de tudo humanos.

Não há dúvidas de que a falta da terra é a causa que recorre nos problemas que influem nas comunidades indígenas. As dificuldades decorrentes dessa falta são conhecidas de nossos companheiros de maneira substancial; elas são inerentes do processo de inclusão que urge de forma peremptória, característica do sistema do capital.

É por reconhecer a importância da terra para nossos companheiros, e sobretudo por reconhecer neles, e também, em suas ações, a autoria de um trajeto histórico de lutas, opressões e preconceitos; que apoiamos, as demarcações das terras indígenas, assim como apoiamos as reformas agrárias ligadas aos povos da terra.

Não é possível conformar-se aos desmandos de um sistema que flutua ao sabor de resoluções do agronegócio, o qual reivindica a posse de terras alheias, alegando a insígnia do progresso e do desenvolvimento. Não é possível conformar-se com a violência da investidura governamental contra a reivindicação dos povos da terra. Não é possível aceitar justificativas pelo olhar do sujeito dominador que fere um direito fundamental: a vida.

Aos companheiros indígenas da UEMS de Campo Grande, parceiros de lutas estudantis, tão engajados e solidários com a causa coletiva, deixamos aqui nosso apoio e respeito. Compartilhamos de sua indignação. Lamentamos suas perdas; e nos envergonhamos do descaso e da alienação de nossa sociedade sectária.

Movimento Acadêmico da UEMS – UUCG.

Faixa com grafite do artista plástico Luciano Alonso

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Do quantum da nossa imperfeição


Quanto mais te conheço, mais me reconheço. Não porque sejamos iguais, mas porque há em você quase tudo que sempre quis pra mim.

Quanto mais conheço seus acidentes, mais quero te habitar e mais quero que você me habite: que você descanse, se fortaleça e revigore em mim.

Quanto mais te vejo e reconheço imperfeições, mais me certifico de que você é meu lugar, e de que não pode haver lugar mais belo nem perfeito para mim.

Quanto mais te conheço, mais te desejo e gosto de você. Simples assim.

Quanto mais empecilhos se apresentam e se avolumam mais acredito no destino, mais desprezo a sorte e o azar – e digo a mim mesmo: o que há de ser será, e tudo valerá a pena.

Quanto mais os dias passam, quentes ou frios, surpreendentes ou iguais, mais acredito que houve um dia abençoado para mim. E este dia é hoje. E o que quer que aconteça, hoje será sempre.

Quanto mais te vejo ou, como agora, te aspiro e te vislumbro no odor (o mais doce odor!) de um pano rosa, mais tenho vontade de dizer que te amo. E, no entanto, mais me fortaleço para silenciar se for preciso. Sem, no entanto, que a sugestão de rimar amor (ou odor) com dor me tente mais do que o bastante para me livrar dela com ironia. Aliás, quanto mais conheço seu passado, mais vejo o meu com ironia: era a imperfeição, afinal, o que eu buscava, enquanto ideais cretinos me rondavam.

Quanto mais te quero para mim mais acredito na liberdade: a tua, a minha, a que há e a que ainda não, e talvez nunca haja. Mas quanto mais me lembro de quão fácil é virar teu corpo sobre o meu, mais me pergunto: será muito mais difícil virar o mundo de cabeça pra baixo?

Quanto mais, deitado em teu colo agora imaginário, me arrependo do que fui, de todo mal que fiz, mais me entendo e me perdoo. Quanto mais reconheço tua pureza mais me descubro ainda puro.

Quanto mais reconheço que erramos mais desejo não errar, mas menos me arrependo, porque esse erro tem um sentido, ao menos para mim, que nenhum outro teve.

Quanto mais te quero, mais desejo te querer, quanto mais temo por meu destino menos temo qualquer coisa. Quanto mais vivo em ti mais estou pronto para a vida e para morte. Quanto mais silencio que começo a te amar mais me certifico disso. Quanto mais descubro como é grande o que cresce em mim, mais cresço em ti e mesmo na possibilidade, sempre real, de tua ausência. Quanto mais te quero, mais sou grato por te conhecer, e pelo destino ou cada acidente que me trouxe até você.

(Num domingo de cachorros loucos)

Sobre minha condição canina

Quase sempre que a vida me desperta com uma intensidade maior que a dos dias comuns, tento me pôr num estado de expectativa canina: postar-me diante do ponto de luz e calor humano que me atrai e permanecer à espera de um afago com os pés ou de uma migalha qualquer. Nem sempre esse estado é possível – geralmente as paixões humanas falam mais alto –, mas quando é, vivo um estado de Graça. Os dias se tornam mágicos e as horas cheias de sentido: algo próximo do que se chama Felicidade.

Mas de certa forma essa é uma situação falsa, pois não pode durar muito tempo. Provavelmente só Diógenes e seus discípulos práticos – não os teóricos – viveram a condição canina como algo perene. A verdade é que o homem não nasceu para a felicidade, e mesmo no olhar que se finge canino – e por isso a condição canina
(kynica) é também uma condição cínica no pior sentido – viceja, escondida, a maldita Esperança. Se Diógenes ou, sei lá, Sócrates, Cristo, Buda etc., foram exceções eu não sei. Sei que eu não sou.

E a esperança, é claro, é sempre a de que o contato mínimo produza um grande reconhecimento. Quando essa esperança viceja à flor desta pele quase sem pelos, eu geralmente pulo a etapa canina, e a felicidade, agora puramente projetada, torna-se um monstro bifronte, que me sorri e fascina de um lado e do outro lambe os beiços pronta pra me destroçar e cuspir fora.

Mas nunca é tarde pra redescobrir o cão dentro de mim. O estado autenticamente canino (claro que há deformações, inclusive entre os cães) não é o do fascínio cego nem da sujeição humilhada, mas do amor quase desinteressado: migalhas dormidas, raspas e restos, pequenas porções etc. Enfim, a felicidade à soleira da porta.

Até a inevitável recaída na condição humana, e a redescoberta – solitária ou não – de que a dignidade do homem reside não na felicidade, mas no amor consciente com que se conduz a luta e a lida diárias. Se mesmo assim os dias continuam a ser mágicos e as horas cheias de sentido, é porque a maldita Esperança acertou dessa vez, ou, quem sabe, porque o homem e o cão interiores se tornaram mais íntimos e colaborativos.

Esses tempos andei pensando em alguém cujo nome não conseguia – nem me interessava muito – guardar. Acho que isso, de pensar quase sem palavras, simplesmente como quem olha um rosto bonito, me criou a ilusão de que se tratava de alguém igual a mim. Mas se nem entre os cães existem iguais absolutos, quem dirá entre as pessoas. É verdade, somos no máximo parecidos. Aliás, somos todos parecidos.

Então é melhor voltar a ser canino – ou cínico no melhor sentido – e esperar (sempre ela, a maldita Esperança) que o olhar que eventualmente cruze o meu possa supor, quem sabe perceber, que o que essa máscara esconde (pois é uma máscara: sejamos cínicos, não hipócritas) não é assim tão mau, tolo ou insípido. Cães não sabem jogar: no máximo correm atrás de uma bola ou brigam por um osso... principalmente se envolto por uma bela porção de carne.