VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sobre o caráter revigorador, mas também sombrio, da obra de arte


A discussão sobre as relações da arte com a miséria da vida que aponta para a promessa de felicidade contida nas obras, fazendo da arte uma “aparência de vida” bem melhor e mais bela do que a cinzenta realidade, pode ser verificada no documentário Lixo Extraordinário (já discutido neste outro post). O filme mostra o percurso do famoso artista plástico Vik Muniz que, ao resolver fazer arte com materiais do aterro sanitário do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, com a participação ativa dos trabalhadores do local - os catadores de lixo -, empreende uma transformação na vida daquelas pessoas. No filme, podemos visualizar o tema polêmico sobre a "inutilidade" da arte (apesar da vinculação da arte com projetos sociais, tal como explicitamente propugnado pelo artista no documentário), e sobre sua natureza paradoxal relacionada ao seu parentesco sombrio com a morte, que retira o seu poder de "encantamento estético" da extração de vida (de histórias de vidas) de pessoas comuns, cujos brilhos tornaram-se "apagados" pelo cotidiano inglório e injusto de uma vida reduzida à sobrevivência e à exclusão social.

As personagens que participam do projeto de Vik são justamente aqueles trabalhadores, cujos ofícios são julgados pela civilização como um dos mais ignóbeis e inferiores, por lidarem com o lixo, com a sujeira, com os restos "inutilizáveis" da sociedade, assim compondo a massa de trabalhadores invisíveis e expurgados pela sociedade. Não podemos deixar de mencionar um dos relatos de uma catadora de lixo a respeito do preconceito que sofre, quando afirma que, ao se envolver nesse tipo de trabalho e diante do incômodo que ele provoca nas pessoas (o mau cheiro que ela exala pelo contato com o lixo), "antes melhor catar lixo do que se prostituir...".

Mas neste interjogo retirado do filme sobre a dinâmica "arte" e "lixo", "fealdade" e "beleza", "matéria" e "ideia" (imagem), "vida" e "morte", para além das implicações sociais e até políticas do documentário, o que chamamos a atenção é justamente para a ambiguidade insolúvel da obra de arte que aparece na trama, quando também ouvimos e assistimos os dramas de cada catador de lixo e o envolvimento intenso deles na criação das obras: a de a obra de arte ser uma promessa de vida mais justa, com poder regenerativo e de encantamento, mas que se efetiva às custas da exclusão e da opressão social; ou seja, somente a partir da escória e da miséria, a beleza suscitada e materializada pela forma artística se realiza como ideia possível dentro de um âmbito não mais sujeito à autoconservação, não mais ligado à sobrevivência dentro de uma "finalidade sem fim".

Eis aí, também, o caráter revigorador mas também "letal" da obra de arte. Os trabalhadores conseguem "fugir" um pouco do trabalho duro e até cruel (há também relatos sobre cadáveres encontrados no meio do lixo), quando participam da criação de seus retratos, embora aqueles mesmos retratos tenham justamente florescido a partir de suas misérias e do lixo, lembrando que esse último é a fonte principal de seus sustentos. Da não liberdade e da injustiça a que tais pessoas têm sido condenadas (por questões de natureza política e econômica), a arte vem a florescer como o campo da liberdade possível, mas não mais sujeita ou voltada à autoconservação daquelas pessoas.

Daí remetemos às relações ancestrais de parentesco da arte com as máscaras mortuárias (há algumas passagens belíssimas encontradas no livro de Maurício Chiarello Natureza Morta em que ele apresenta tais relações), que, ao promoverem o ocultamento ou o maquiamento da morte (a mutilação do cadáver e a impotência do homem), apresentam-se mais "vivas" e mais "belas" do que o próprio material do qual se originaram. E isso é visivelmente atestado nas obras produzidas pelos personagens do filme, nos retratos feitos pelo artista Vik Muniz com a participação dos catadores de lixo. Essas imagens, ao mesmo tempo que expõem toda a tristeza e crueza de rostos "esmaecidos" e entristecidos, também se impõem como algo muito melhor, assim escondendo (ou, talvez, superando) o horror desse mundo. 
Ana Paula Gomide


*  *  *

Acréscimo em 29/11:

Oi, Ana. Veja que honra: Affonso Romano de Sant'Anna, grande poeta e ensaísta, agradeceu o envio de seu texto e nos enviou, à guisa de comentário, este outro, de sua autoria e publicado originalmente no Estadão, sobre a obra de Vic Muniz. Uma bela e autêntica aula de arte contemporânea. Para garantir uma apresentação razoável, republico-o como anexo, e não como comentário. R.

QUESTÕES EM TORNO DE VIC MUNIZ(*)
Affonso Romano de Sant'Anna

A exposição de Vic Muniz no MAM/RJ mexe numa série de questões:

-o reencontro da arte com o público
-o reencontro com a figuração
-o reencontro com o social histórico
-desmistificação da falsa querela entre fotografia e pintura
-a superação das "in-significâncias" que caracterizam grande parte de obras "contemporâneas".

A essas se seguem outras questões igualmente instigantes. Algumas pessoas ao verem sua exposição ficam sem saber como classificá-lo.  Criador ou re-criador? Teria ele descoberto (como ocorre com alguns artistas hoje em dia) alguns "truques" e "macetes", que repete, ou supera esse vício da arte do nosso tempo?

Cada um desses tópicos mereceria desdobramento. Limito-me, no entanto, em sumarizar alguns comentários e em levantar algumas questões.

1- Esta é uma exposição que realiza o reencontro do público com a arte.  Isto é raríssimo hoje em dia. O que tem caracterizado certas mostras é  aquilo que Jean Clair- o crítico de arte de maior prestígio na França- chamava de " multidões sonâmbulas". Ir a museu virou uma variante do turismo. Pessoas vagando entre obras que não entendem sem conseguir compatibilizar as bulas oferecidas com o produto exposto. Ou então, propostas de interatividades entre a in-singificância e a idiotice.

VM consegue a empatia e a admiração do público e a atenção de críticos daquilo que Howard Becker chamava de " arte oficialista".

2- Essa exposição derruba outra falácia "contemporânea": de que a figura acabou / a representação morreu. Neste sentido, VM superou essa espécie de querela entre  os atuais "protestantes" (contra figura) e os atuais católicos (pela representação).

3- Coloca mais uma pá de cal na equivocada querela entre pintura e fotografia. Se há cerca de  100 anos uns achavam que a fotografia mataria a pintura, a obra de VM inscreve um capítulo nessa novela  que poderia  ter um titulo: quando a fotografia ressuscita a pintura, o quadro e o painel.  Aqui a fotografia está dialogando com várias artes vizinhas: a escultura, o desenho, a pintura, a gravura, etc. O fotógrafo não compete com outros gêneros, mas soma-os ao seu fazer.

4- Ao contrário de in-certas manifestações "contemporâneas", as obras de VM têm um sentido social, histórico e político. Trabalha com imagens de   favelados, com ícones de nossa cultura, com fatos jornalísticos, faz  uma critica clara ao momento histórico e à sociedade de consumo, além e claro de se envolver pessoalmente em programas sociais. Retomando a já clássica e incontornável relação entre lixo & luxo  diverge  da arte produzida nas últimas décadas que exercitava  um tipo de niilismo e alienação. Sua  exposição, já no principio mostra, criticamente, aquele mapa do mundo onde os continentes são representados por computadores e peças eletrônicas amontoadas e outros dejetos da cultura moderna.

5- VM dialoga com a arte "anterior", não para ridicularizá-la juvenilmente, mas para reinscrevê-la, metamorfoseá-la no   tempo & espaço. Desenvolve um trabalho de paráfrase, paródia e de estilização de  obras  de Caravaggio, Goya, Monet, Gauguin, Piranesi, Boticelli, Bosh, etc. ( Por vício acadêmico alguém pode querer chamá-lo de pós-moderno). É curioso notar, contrastivamente,  que se alguns artistas do princípio do século 20  queriam queimar museus e jogar a arte anterior  no lixo, no final do mesmo século, como se tivessem juntando as contradições, outros artistas, como VM, não pregam a ruptura, mas  vão  ao passado com olhos no presente & futuro para reprocessar, reciclar conteúdos e conceitos.

Neste sentido, diria que é um "comentarista" da arte  de ontem & hoje, pois está  relendo várias obras clássicas à sua maneira, "refazendo-as", "reinterpretando-as" com materiais pouco convencionais. Ao retomar os "antigos", ele está não apenas revisitando, mas  "reilustrando" a história.

E aqui a palavra "ilustração" tem sua pertinência. Há algo de ilustração no sentido jornalístico do termo. E talvez aí esteja, ao mesmo tempo, tanto a  força   quanto  os riscos de suas obras. Se alguns de seus trabalhos aparecessem como ilustração em jornais e revistas, funcionariam perfeitamente. E o caráter jornalístico e documental é tão evidente, que ele trabalha também sobre fotos & fatos da imprensa. Deve ser neste aspecto que algumas pessoas têm dificuldade  em  qualificá-lo, apesar de seu êxito de crítica, de público e de venda. Em contrapartida, pode-se também indagar se certas ilustrações em revistas e jornais, se certas vitrinas de lojas, se certos anúncios não transcendem também o provisório e não mereceriam a perenidade dos museus.

6- Do ponto de vista estrutural & estruturante da obra de arte, VM vai na contramão de outro vezo contemporâneo: a entropia, a fragmentação, o improviso, o rascunho, o recorte, a dispersão, o aleatório, o acaso. Ao contrário, está ordenando a desordem, a confusão, a ambiguidade e a indecisão. E enquanto outros artistas se perdem entropicamente nos fragmentos, ele está fazendo a "reunião", conforme uma noção heideggeriana de arte como "reunião relevante e/ou revelante". Enfim, onde outros dispersam ele aglutina, onde outros se confundem, ele se esclarece. VM está reunindo as partes em função do todo, o átomo em função da matéria, o pigmento em função da imagem e do assunto. Oferece uma visão  gestaltiana do caos,  ordenando-o, mostrando-o pelo seu avesso.

7- Daí outra característica essencial de seu trabalho. E a palavra "trabalho" aqui faz sentido. Nele há  técnica e criatividade. Onde outros praticam  aquilo que no livro O ENIGMA VAZIO, IMPASSES DA ARTE DA CRITICA, chamei de  "irresponsabilidade estética e a estética da irresponsabilidade", esse é um autor que  não apenas se insere no seu tempo & espaço históricos,  mas tem "métier", pesquisa e desenvolve um "projectum". Seu fazer tem uma "estrutura", onde a " invariante" é o fragmento e as "constantes" são os diversos materiais que usa para preencher o conjunto.

8- Poder-se-ia alegar que ele utiliza   técnicas mais velhas que a Sé de Braga. Com efeito, nas procissões religiosas em Ouro Preto ou São João Del Rei, para ficarmos apenas no Brasil, as ruas são decoradas com pétalas de flores, utilizando uma técnica pontilhista. Igualmente, os que fazem desenho com areia colorida dentro de garrafas, como no  Ceará, ou até mesmo aqueles artistas de calçada que, em Nova York e Paris desenham nos passeios supreendentes cópias de quadros que estão nos museus, tudo isto tem a ver com a obra de VM.

Igualmente  o ilusionismo, o "trompe l'oeil", as anamorfoses que no Barroco conheceram seu apogeu, podem ser lembradas em relação a algumas de suas obras. É até possível que  alguém queira  chamá-lo de neobarroco, como se tornou moda  dizer nos últimos 40 anos.Com efeito, olha-se a obra, e  de longe vê-se uma coisa, de perto vê-se outra , e as duas visões se informam, a informação se complementa até pelo avesso. Mas o seu  ilusionismo, reconheça-se, produz efeito, não é um jogo gratuito, mas resulta em nova  informação e sensibilização estética.  Não tem nada a ver com a falsa equivocada pregação duchampiana da "indiferença".

Em síntese, a obra de VM  sendo de certo modo sintoma de sua época,  por outro lado, opõe-se ao que tenho definido como " in-significância". Ou seja, grande parte das obras expostas em galerias, museus e festivais tipo Documenta Kassel, são "enigmas vazios". São   exercícios falaciosos que, se  chamam a atenção, devem isto  à estratégia de marketing da  espetacularização.

Dou um exemplo, apenas um, das correlações possíveis entre as obras de VM e outros "contemporâneos". Consideremos  as obras de Daniel Spoeri, lá nos anos 60. No afã de ter que inventar sempre algo de novo e/ou diferente, lançou  ele um tipo de arte ligada à comida- a  "eat art" (arte comida), que consistia em expor pratos com restos de comida deixados às vezes até a podridão. Uma típica "in-significância" como tantas outras. No caso de VM ele retoma  a idéia, não a coisa. O que ele expõe não é apenas  o chocolate representando uma figura nem o macarrão parodiando a Medusa de Caravaggio, mas a representação,  a fotografia da idéia. Ou seja, enquanto em outros (como na "land art") o espetáculo é a obra, no seu caso de VM a obra é  espetáculo. Vamos a um exemplo do que digo: uma coisa "in-significante" é encher um caminhão de lixo e espetaculosamente despejar  os dejetos dentro de uma galeria de arte, com já foi feito na França e outros países; outra, bem outra,    é trabalhar sobre o lixo, reprocessá-lo teórica e tecnicamente. Enfim, a matéria bruta não é necessariamente arte. Arte é transformação, melhor ainda, transfiguração.

VM dá a sensação de descontração, de liberdade, de estar centrado num trabalho consequente. Picasso falou aquela frase de efeito que é apenas parcialmente  verdadeira: "eu não procuro, eu acho". De VM se poderia dizer que ele encontra, porque procura com atenção, paciência e criatividade.

(*) Estado de São Paulo-19.04.09

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Ó pá, mas esse gajo é bom à b'Eça!

Como machadiano, bom ou mau mas em todo caso escolado e diplomado (eis, finalmente, uma boa chance de fazer propaganda de meu livro sobre Machado de Assis), é com muita vergonha que publico este post, não sobre Machado, mas sobre um autor que "nós machadianos" costumamos opor, e quase sempre desfavoralmente, ao escritor carioca, como se essa oposição iluminasse muito as qualidades deste.

E é muito envergonhado que confesso que só muito recentemente comecei a me dedicar sistematicamente à leitura das obras de Eça de Queirós, de quem, há alguns meses, eu só havia lido A cidade e as serras. Lido e apreciado muito, mas não a ponto de me motivar a ler os romances maiores, que eu sempre havia tomado por meros derivados do naturalismo de Zola. Se fosse o caso de um derivado, oras bolas, melhor ler um brasileiro: um Adolfo Caminha, um Aluísio Azevedo...

Foi uma boa conversa com Paulo Franchetti na Unicamp que me levou a ler a própria obra-prima naturalista (Franchetti, aliás, lhe recusa esse rótulo) de Eça, O primo Basílio, o mesmo livro a que o próprio Machado dedicou uma crítica conhecida e, bem medidas as palavras, escandalosamente injusta. Um escândalo bem maior que o então autor de poemas e romances crepuscularmente românticos tentou apontar no livro de Eça, com seu suposto apego a detalhes sórdidos e desnecessários.

Ao contrário do que escreveu o "jovem Machado", tudo ou quase em tudo em Eça atende a um princípio de precisão descritiva, narrativa e estilística. Quem quer que leia seus romances com cuidado reconhecerá uma inteligência viva e uma sensibilidade finamente fenomenológica (semelhante, aliás, à dos grandes romances de Machado) em ação, precisa até mesmo nas metáforas de que se vale para caracterizar situações e personagens.

E tudo, ao mesmo tempo, muito distante do cientificismo zoliano. O próprio Basílio, um perfeito crápula, por mais que a lente do escritor o devasse em sua sordidez, dificilmente não angariará a empatia e mesmo, por vezes, a simpatia do leitor despido de preconceitos, por exemplo no famoso episódio da "sensação nova" que, ajoelhado entre as pernas de Luísa, ele "ensina" à amante: porque, mesmo de enlace com o desejo de posse, há aí algo que a própria obra de Eça (como a de Machado) transpira, e que, transmutada em vigor artístico, faz parte de sua grandeza: o amor pelas mulheres e pela vida.

Mas não vou entrar em detalhes; deixo isso para um artigo futuro. Depois d'O primo Basílio, li O mandarim e estou lendo agora Os Maias, romance volumoso do qual, como me informou meu amigo Sebastião, Luiz Fernando Carvalho realizou uma minissérie televisiva. Pelo que conheço da obra de Carvalho, suponho que se trate de um bom trabalho, mas não sei se ele tentou e, nesse caso, conseguiu recriar a fineza e a sensibilidade do episódio que conto a seguir, e com cujo comentário encerro este post.

Trata-se de um pequeno clímax dramático - na verdade trágico - ainda no início do livro. Depois de anos sem rever o filho, com quem rompera devido a um casamento com o qual não concordava, o pai, Afonso Maia, recebe-o na residência rural da família. Desesperado, Pedro anuncia que a esposa fugira com um italiano, levando consigo a primeira filha do casal. Afonso acolhe o filho, alojando-no em seu antigo quarto, e tenta vigiá-lo, certamente já temendo o pior, que não tarda a se consumar: Pedro se suicida, deixando para o pai apenas um bilhete e o filho pequeno, Carlos Eduardo (pelo visto o verdadeiro protagonista do romance).

O que poderia ser apenas um dramalhão romântico ganha outros acentos e sentidos graças a uma das características geralmente mais censuradas na prosa de Eça: o apego a detalhes aparentemente insignificantes, tratados com requintes de um descritivismo parnasiano. É a descrição (e narração) dos salões em que, atordoados, Afonso e criados se movem; do quarto de Pedro, que o pai, a despeito dos protestos do filho, insiste em mandar arrumar; do silêncio constrangido e funesto que habita a casa, cerrada à chuva lá fora; do próprio leito e das roupas do netinho que Afonso contempla com amor; é toda essa densidade ao mesmo tempo material e incorpórea que assinala a distância que, apesar de todo o afeto renascido nessa hora dramática - uma distância, aliás, cavada menos pelos sentimentos que pelas convenções -, separa pai e filho.

Afonso pressente perfeitamente que Pedro está prestes a fazer o pior, mas simplesmente não pode permanecer ao seu lado.

Essa sensibilidade para a solidão da vida burguesa está muito além dos clichês românticos e, mais ainda, das cartilhas naturalistas. Ela participa do olhar agudo com que Eça devassou - pelo que pude ver até agora -, muito mais que a sociedade portuguesa, as mazelas da dita civilização ocidental, ou seja, isso de que ainda nós somos herdeiros.

Em tempo
Minha vontade, ao ver as últimas notícias, é falar de algo muito mais premente que as páginas antigas, por atuais que ainda sejam: o massacre dos índios em Amambaí-MS. Só não faço isso, e apenas registro esse fato, em respeito a uma decisão: a de não fazer deste espaço um mero arquivo da barbárie. Quero, também, registrar meu apoio aos estudantes da USP, que, com todos os equívocos, reais ou supostos, também lutam por uma bandeira esquecida: a autonomia universitária. Pois se a Universidade não for um espaço de liberdade e experimentação, não pode ser nada de bom.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Melancholia, morte e alma do mundo

Finalmente assisti, na última sexta-feira, Melancolia de Lars "von" Trier; aliás, Melancholia, pois a solenidade latina do substantivo em inglês é certamente significativa, de modo que a exclusão do "h" do título em português me parece injustificada.

Confesso que fiquei pasmo com a beleza do filme, tanto pelas imagens quanto pela densidade humana. Mas Trier sempre me incomoda muito (aliás, acho que ele ficaria muito triste se soubesse de alguém a salvo disso), e ainda não sei se esse filme me incomoda um pouco menos ou um pouco mais que os outros; menos, pelo próprio fato de a beleza humana finalmente conseguir se impor, de forma - totalmente? - convincente e, ao contrário, por exemplo, do que ocorria em Dogville, no âmbito da própria diegese; mais, pelo fato de justamente essa beleza, ou melhor, essa conciliação, afinal de contas legitimar de uma forma, digamos, mais "consistente" o que Trier tem de pior, e  que é, como sempre, seu estranho, paradoxal e doloroso mas inequívoco elogio da morte.

Sei que é um filme de uma beleza estupefaciante, no qual finalmente Trier faz inteira (ou quase isso) justiça à emulação que vem empreendendo, pelo menos desde de Anticristo, da obra de Tarkovski (no caso de Melancholia, de O sacrifício, onde, entre outras semelhanças, também se coloca uma situação de "fim do mundo"), e isso, talvez, mesmo a despeito de o quanto o pessimismo escatológico de Trier inverta, ou seja, piore Tarkovski, a começar pelo quê de afetado e, claro, equívoco desse pessimismo (que, no entanto, é autêntico e profícuo, e por isso não vou pô-lo entre aspas).

"Talvez" porque, de fato, Melancholia ainda é um filme estranho e, diga-se logo, algo decadente, no sentido de certo confinamento (paralelo, aliás, ao dos personagens) aos limites tolhidos de uma visão burguesa e desesperada da vida, e, quando menos, pronta a resvalar, num gesto audofensivo, para o cinismo. Melancholia é uma visão literalmente fulminante da vida contemporânea - mas não de toda ela, embora, certamente, de muito de sua essência. Porque a encruzilhada niilista de que ele trata não confronta apenas uns tantos ou quantos de nós, "subjetivamente", mas a todos, na prática. A alegoria do fim do mundo, mesmo construída algo "misticamente", diz respeito a isso: ao trato com um mundo, quiçá, em estado terminal. Um mundo, quando menos, terrivelmente doente.

Essa doença é também, naturalmente, a de cada um dos que vemos ali, com exceção, talvez, dos seres inocentes, entre eles o menino. Aliás, o tratamento afetuoso e enobrecedor dispensado por Trier ao menino, filho de Claire e John, me faz acreditar que o cineasta não concorda exatamente com o que diz Justine no auge da forma depressiva-destrutiva que ela assume na segunda parte, a saber, que a Terra é má, e por isso merece ser destruída. No entanto, como Anticristo, Melancholia não está, no núcleo espiritual ou ideológico mesmo de sua concepção, de sua forma-sentimento, a salvo desses deslizamentos metafísicos, e seu final é a prova mais simples e cabal disso: ambíguo, paradoxal que seja, é sempre um elogio da morte. Uma emulação artística e algo gozosa da morte, uma espécie de invocação sua, como aliás é evidente que Justine invoca "Melancholia", o planeta, entre as imagens de beleza arrasadora (concordo com você, Fabio) que abrem o filme.

No âmbito dessa significação geral, "metafísica", Melancholia é um filme sobre a morte e a alma do mundo; pois Melancholia, o planeta, é, evidentemente, essa alma presente-ausente que finalmente se reencontra, ou com a qual finalmente se acerta as contas.

Mas Melancholia também é um grande filme pelo "recheio humano" que intermedia esses momentos extremos. Pela primeira vez, a meu ver, Trier consegue fazer de seus jogos de inversão dos maniquísmos aparentes algo que efetivamente dissolve todo e qualquer maniqueísmo (no fundo, portanto, não tão aparente assim). Pela primeira vez, para além de todo Mal (e todo Bem? não sei), a existência humana se vê inteiramente reduzida ao que tem de melhor e de pior: o amor e o medo. Ou, antes que o amor, o próprio sentimento da vida, ou melhor, nesse caso, o sentimento "cósmico" (mas que também se projeta sobre a vida) que é a espécie de convicção ou, mais que isso, vinculação transcendental de Justine. Talvez porque o defrontamento com a morte se dá, agora, de um lugar de autoconsciência extrema de quem o vive; e porque diante da fatalidade da entrega a essa consciência em estado limite (Claire) ou da busca de superá-la (Justine e o menino) talvez já não haja sentido em subordiná-la a uma ritualística anulatória, como se dá em Dogville e Anticristo.

Mais que Justine, é Claire e seu círculo de relações imediatas (no qual Justine é importante, mas em parte como elemento "invasivo") quem condensa a densidade humana de Melancholia. Pois se na primeira parte Claire se torna, enquanto agente repressivo ligado à figura materna, uma espécie de contraponto maniqueísta à ânsia de plenitude da irmã (praticamente induzindo-a, de forma sub-reptícia e talvez inconsciente, a fazer gorar o próprio casamento), na segunda é ela, Claire, quem se vê exposta em toda sua fragilidade humana, como ocorrerá com seu marido, John - em sua segurança eivada de fragilidade, talvez o personagem mais denso do filme, o que mais se configura como um retrato subjetivo da melancolia -, ao se valer da solução fatal que ela reservara a si própria para o caso de seus temores se confirmarem.

Não por acaso, de todas as imagens que compõem o prólogo - muitas de um teor apocalíptico bem ao gosto do Benjamin do "drama barroco" e do Angelus Novus -, talvez seja a sua, carregando o filho por um gramado onde seus pés se afundam, como num lamaçal (um pesadelo que se ligará a fatos posteriores), a mais angustiante. É Claire quem se vê, na segunda parte, opressa pela segurança cruel da irmã, num processo, porém, que cederá à conciliação a partir do momento em que Justine obtiver um trunfo significativo, de alguma forma compensador da esperança de felicidade perdida (e certamente ilusória) do casamento: a confiança do próprio filho de Claire, num momento em que Melancholia está próximo demais para que haja sentido em celebrar qualquer espírito de vingança (ou porque Justine é mesmo muito diferente de Grace).

Ao mesmo tempo, porém, do ponto de vista deTrier - e, por extensão, do nosso -, o destino desses três personagens, como de todos os outros, inesquecíveis, é em si mesmo a ritualística anulatória de que eles (Justine, sobretudo) de certa forma abrem mão, carregando toda a ambiguidade de um gesto de denúncia e de lamento que, na impossibilidade de ir além disso, se resolve, embora de forma talvez mais ambígua e paradoxal do que nunca, enquanto gozo, "beleza". E, sim, me permito as aspas porque, a bem da verdade, o final de Melancholia ainda tem algo de insuficiente ou precipitado, senão vulgar, mesmo.

A própria "cabana mágina", sob a qual se sela a beleza do gesto conciliatório na hora extrema - Justine, ao contrário do que poderia fazer, pois já se vingara de Claire como que tomando de volta para si o sobrinho, convida a irmã para adentrá-la e toma sua mão -, contém algo de um recurso vulgar, que é a espécie de sublimação do confinamento (social) em outro, "metafísico", tão típica dos contos-de-fadas ideológicos contemporâneos (Harry Potter, por exemplo). Não importa a ineficácia prática desse gesto (embora sua confiança não deixe de continuar ecoando, pois a ligação de Justine com o transcendente é por demais efetiva para que isso não ocorra): ele foi o máximo a que se pôde chegar enquanto afirmação de algo.

Daí, também, Trier não deixar de emular o mesmo mundo burguês reificado que denuncia, o mundo onde a própria natureza (inclusive a humana: a festa, por exemplo) foi desertificada e assimilada a linhas e padrões de racionalidade (as primeiras tomadas do jardim de John ilustram isso de forma estranhamente magistral). O humor por vezes duvidoso (embora o mais das vezes enganoso) do filme se presta, em alguns momentos, a essa emulação. Por exemplo, quando Justine se desvencilha habilmente das cobranças a que o mundo da vida burguesa e enfatuada - com suas relações escusas das quais, ao que tudo indica, ela participa mas tenta escapar - a submete durante a festa: críticas que sejam, essas passagens mostram o quanto esse mundo importa para Trier, o quanto é preciso se afirmar nele ou diante dele.

É verdade que Trier é um mestre dos paradoxos, e, pelo menos desde Os idiotas, zela por desconstruir mesmo os elementos provocadores de que se vale. Por exemplo, o velho e sáfico pai de Claire e Justine, a princípio um elemento disruptor na ordem burguesa, revela-se apenas outro burguês enfatuado, em seu contraste - efetivado em mais de um ponto - com o mordomo, este com sua submissão mas também sua efetiva nobreza a toda prova. É por via desse último personagem, aliás (junto com as relações de trabalho da própria Justine), que Melancholia deixa entrever o peso da condição social enquanto dado economicamente - e não apenas subjetiva ou "culturalmente" - significativo. O mesmo mordomo de quem sua patroa, Claire, confessa não saber sequer se tem família, quando ele, ao contrário do colega buñueliano ao qual parece remeter (o mordomo de O anjo exterminador), decide (e consegue) não permanecer naquele lugar de fim melancólico.

Mas a todos nós - e a Claire, Justine, John etc. - é vedado qualquer outro aporte significacional além dos polos dos quais o sentimento da melancolia é talvez uma espécie de instável centro ou meio-termo. O que também significa que Trier recusa se banhar nas águas de um romantismo populista (Buñuel também não chega a fazer isso, pois seu personagem não se liberta de seu emburguesamento), mas não o impede de cultivar um outro, transcendental. No outro extremo, a miséria: a mesma inominável miséria - humana, social, individual, coletiva, etc. - tematizada em Dogville e Anticristo.

Como acontece nas grandes obras de arte, o mesmo gesto que desenha os limites ideológicos é que desenha o alcance, a amplitude artística e significacional. O que não impede de criticá-lo: se a arte não serve para ampliar os horizontes para além de si mesma ou dos que institui, para que servirá? Claro, a beleza; mas o que é a beleza sem horizontes que se renovem, a beleza que não é mais do que mera visão, senão a própria melancolia?

As imagens deslumbrantes que abrem Melancholia, com seu rigor opressivo que tanto alimenta quanto se tensiona por essa beleza, constituem um monumento sombrio mas importante a este nosso mundo em ruínas. Desde Cidade dos sonhos (sobre o qual meu amigo Sebastião publicou aqui este post) um filme não me toca tanto. Por sua fortaleza humanística inexpugnável, mesmo diante da miséria humana em que nos mergulha no final, prefiro o filme de Lynch, mas reconheço que o de Trier,  inclusive por seu conteúdo provocador e certamente problemático, diz mais, e de forma mais intensa, sobre o que somos hoje.

Dedico este post à Josy, que me provou que
mesmo os dias de luto podem ser dias bonitos.