VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

terça-feira, 13 de março de 2012

A alma e o cifrão (demanda aos que herdam)


I

A vontade de escrever sobre quadrinhos foi uma das minhas principais motivações para buscar um espaço alternativo de produção textual, ou seja, que não o dos artigos e relatórios exigidos por minha profissão. A configuração – a começar pelo nome – que este blog tomou desde cedo, no entanto, nunca me pareceu propícia a isso. Não porque os quadrinhos não forneçam matéria para crítica, muito pelo contrário, mas porque minha relação com eles é marcada por um acento lúdico e afetivo que sempre transparece muito; e por mais que eu reivindique a necessidade de uma crítica afetiva – ou seja, que não dissimule, mas problematize e potencialize criticamente seus afetos –, as marcas ideológicas desses produtos são muito fortes para que o tipo de exame que eu tendo a lhes dedicar não pareça um corpo estranho (como talvez aconteça com meus post sobre música pop, mas a música é divina, a ela se pode perdoar quase tudo) sob a égide desse nome, "arquivos críticos".

São?
E também porque quadrinhos, ao contrário do cinema e da música (ou das canções, se fazem questão da distinção) e mesmo de livros (há quem leia obrigado), é coisa para aficcionados. Quando se fala em X-Men, por exemplo, o que vem à mente da maioria das pessoas é o filme, os desenhos animados etc. Não se escreve sobre quadrinhos para leitores em geral sem muitas mediações, como esta que estou fazendo agora. Isso antes de entrar na questão das mitologias todas que os animam, sejam as ficcionais que ele produz ou as "reais", ou seja, toda a cronística (e, digamos, tietística) que constitui a histórias (e as historinhas) de seus autores e veículos (sim, porque não só um Stan Lee como, digamos, uma revista como a antiga Gibi acabam se tornando "personagens").

O que vou fazer nesse post é apenas, digamos, uma amortização nessa dívida comigo mesmo. Será uma amortização em duas parcelas, porque há uma segunda, ou seja, um outro post, em preparação. Mas esta é maior, mais vultosa, re re (riso crispado).

II

Deixem-me começar essa segunda parte com a confissão de um alívio: foi bom não ter levado adiante os vários rascunhos iniciados deste post, pois se o tivesse feito teria cometido, primeiro, uma grosseria – para não dizer uma monstruosidade – e, segundo, uma burrice, quero dizer, uma crassa ignorância. Ou melhor: uma ignorância factual e uma burrice sociológica. Porque eu pretendia subintitulá-lo – ao post – nada menos que "por favor, matem o Tio Patinhas", não sabendo que alguém já o havia feito: matado o Tio Patinhas, ou melhor (porque, de fato, não é a mesma coisa), fixado os limites de sua vida, num pequeno quadro fúnebre (não o chamarei "um quadrinho", mesmo porque não é parte de uma história, sequer uma tira; a rigor, seria uma charge):


Confesso que quando me deparei, há alguns meses, com essa estranhíssima e melancólica cena, fiquei um tanto incomodado, sentindo o sinistro da coisa... Mesmo porque cem anos me parecem pouco para uma sede de vida (e, sim, claro, dinheiro) como a do velho muquirana, "o velho muquirana mais adorável (e o mais muquirana) do mundo", como alguém já deve ter escrito. E, no entanto, a minha consciência de o quanto essa vida fictícia é perniciosa na construção de tantos corações-e-mentes havia me levado, sim, a pensar numa séria reivindicação para que se a eliminasse. Já não se matou (mas, é verdade, quase sempre ressuscitou) tantos heróis, quase todos muito mais nobres? (Um dos projetos abandonados, aliás – mas este é possível que eu retome –, era sobre uma história do Patinhas feita pelo criador do Super-Homem.)

Mas o fato é que, mesmo "morto", o velho Scrooge McDuck (sabidamente inspirado no Ebenezer de Dickens) continua vivendo aventuras, inclusive contemporaníssimas; e o fato é que é obviamente ridículo supor que a Disney abandonaria seu rico filão em prol de quaisquer princípios; e o fato é que sequer essa lógica, de morte de personagens, existe no mundo das quadrinhos infantis ou mesmo na ficção em geral. Ninguém tem notícias recentes do Yellow Kid, mas elas podem surgir a qualquer momento.

Rosa em autorretrato
O fato é que matar o Tio Patinhas não melhoraria o mundo. Se um dia o mundo se esquecer do tio Patinhas, aí sim, pode ser que isso signifique que o mundo se tornou melhor.

E o fato é que o que fez Keno Don Rosa – e eu não me refiro à lápide tumular – já foi muito. Não o bastante, é claro, mas humanizar o Tio Patinhas a ponto de defrontá-lo com sua má consciência (ainda que para consolá-la e afinal premiá-la) já é um passo adiante, embora comporte também outro, ou outros, atrás. Porque isso de mascarar ou edulcorar um cinismo antes crasso é sintoma de um titubeio, de um andar trôpego que só pode, mesmo, ser um sintoma terminal. E Don Rosa, sem dúvida, sabe disso.

Por que, no entanto, Rosa não matou o Tio Patinhas, não escreveu a história de sua morte? Já disse: porque isso não se faz; porque isso seria uma monstruosidade, como foi uma monstruosidade de minha parte ter cogitado pedir isso.

E, no entanto, essa renitente "imortalidade" conferida às "mitologias" quadrinhísticas tem menos a ver com uma lógica antropológica ou cultural em sentido lato do que com a lógica do capitalismo: é a lógica da eterna reprodutibilidade do mesmo, modificável mas nunca a ponto de perder sua identidade comercial. Pensando bem, seria bem legal dar um fim digno ao bom velhinho, re re (riso sádico).

III

Barks, "aposentado"
Don Rosa, como se costuma dizer, "não é um Carl Barks". Seu detalhismo meio hard, à la Crumb – e que, ao contrário do que ele mesmo quis dar a entender quando disse, certa vez, que seus desenhos “ainda” eram muito detalhistas, na verdade aumentou com o tempo –, por mais que invista seu trabalho de uma riqueza barroquizante, é nitidamente um elemento engessador, ainda mais comparado à agilidade e à economia de recursos de Barks, sua leveza e "espontaneidade" admiráveis, forjadas a muita inteligência e sensibilidade plástica, que lhe valeram o posto de maior quadrinhista Disney até hoje.

O mesmo vale para os roteiros de Rosa, de um grau de elaboração e complexidade que os tornam, sim (é uma velha querela entre fãs e detratores), merecedores de uma paga adicional – a que se dá aos trabalhos artísticos, e que também Barks merecia –, mas que igualmente engessaram muito da espontaneidade viva, ou melhor, do campo de possibilidades antes infinito (mas que, naturalmente, não se fechou ou fechará após Rosa) a que se abria a supraexistência do pato mais rico do mundo, e que o próprio Barks havia feito questão de cultivar. Em sua reescritura da vida do personagem (na série A saga do Tio Patinhas), Rosa a aplainou de uma forma que contraria não só várias histórias do grande mestre como a própria concepção fundamental do pato sovina como ser inesgotável.

BarkScrooge em ação (em
"O campeão de dinheiro")
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É verdade que Rosa buscou – e conseguiu – dar maior amplitude histórica e sociológica ao Tio Patinhas; mas perdeu, em sua recusa (“ética” mas, diria um Harold Bloom, um tanto fraca) do cinismo de Barks, muito do aguilhão psicossociológicobarksiano: a “tradução” quase histérica que Barks fez da psicologia “do próprio” capitalismo, ou seja, de seus cidadãos médios (Donald) e, digamos, extremos (Patinhas, é claro), embora de um “extremismo” previamente compensado, “perdoado”, pela infantilidade de fundo. E que se vê, em Rosa, reduzida a um “romantismo” tão “bem intencionado” quanto visivelmente incrédulo, no mínimo desconfiado de si mesmo. Numa feia expressão, de má-fé.

Balela ideológico-
metafísica de Rosa
E, no entanto, ninguém, depois do Homem do Pato, deu tanta vida e poesia ao Tio Patinhas. Ninguém, depois de Barks, lhe deu tanta alma. E sem tolher, propriamente, a essência ruim dessa alma: a ambição sem limites do velho pato, ainda tamanha a ponto de levá-lo a arriscar insana ou criminosamente, dir-se-ia no mundo das instâncias jurídicas, a vida dos próprios sobrinhos. Estes, por sua vez, com seus pruridos éticos e, às vezes, laivos de revolta, se apresentam como herdeiros futuros que terão um dia, supostamente, a chance de fazer melhores usos de sua fortuna... Outra balela?

Mas eu já disse muito. Logo eu, que me quero despojado e não me livro da mais-valia dos sentidos... Uma última palavra? Não, não matem o Tio Patinhas, mesmo porque seria tão inócuo quanto foi enterrá-lo: herdem-no, da melhor forma possível. O que significa, com certeza, jogar muita, muita coisa fora – enquanto "o tempo", ou seja, o declínio do império capitalista, não se encarrega de fazer isso...


Dedico este post ao colega e amigo Tauan Tinti, 
erudito como ele só mas que se interessa pelo assunto.

Só para comparar:


Lost in the Andes, de Carl Barks


Return to Plain Awful, de Don Rosa


P.S. - Todos os quadrinhos aqui reproduzidos, fora a charge do enterro, estão nas traduções (e colorizações) às vezes empobrecedoras da editora Abril. O primeiro diálogo (de "A coroa dos reis cruzados"), por exemplo, no original é assim: "Because I was hunting gold
at the time and didnt care about dusty old books!"; "But notice how the little dollar signs in his eyes have lit up now!"; "Yes, they do look rather lumi...". O penúltimo e o último quadrinhos são, respectivamente, de "Em busca de Kalevala!" e "O tesouro de Creso". Para saber mais sobre essas e, aliás, a maioria das histórias dos quadrinhos Disney, visitar o site do projeto Inducks: http://coa.inducks.org/.

domingo, 11 de março de 2012