VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Não ao Pensamento Único

Capas recentes de edições concomitantes,
ou quase, das revistas Veja e Época

Mark Zuckerberg e elogio ao enriquecimento pessoal: são esses os temas em pauta na "grande imprensa" brasileira, tão carente de assuntos importantes.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

O poder e a glória da farofa

Tenho explicitado em público a minha contenda com o ator hollywoodiano Nicolas Cage. Ele, certa vez, comprou cinco Iates; eu apenas comi farofa. Ele adquiriu uma Ilha no Caribe; se eu viajo, como farofa. Ele se tornou dono de um Castelo e de uma Casa Mal-Assombrada. Deus me livre: eu quero apenas morar num lugar que me dê farofa.

Além disso, talvez eufórica e narcisicamente, perdido e transloucado com a dinheirama que ganhou por meio de sua participação nas películas comerciais de Hollywood, entrou numa disputa com Leonardo di Capri para tomar posse, num leilão, de um Crânio de Dinossauro. Eu apenas peço a minha mãe que, aos domingos, faça farofa. Ah: não se faz farofa com Crânio de Dinossauro.

Nicolas Cage anda depressivo e triste, pois faliu. Caiu dos castelos para os paralelepípedos com a mesma velocidade que tinha subido.  Já não é convidado para protagonizar os filmes de grandes bilheterias. Ao contrário, os meus amigos andam me prestigiando: me convidam para comer farofa. Diferente dele, ando alegre, entusiasmado, contente.

Ninguém sabe ao certo a origem da farofa. Sabe-se que é uma invenção brasileira. Por certo teve a contribuição indígena com a mandioca; e a dos negros da Senzala com o uso dos restos de porco da Casa Grande. Sabe-se que, como o Brasil, como o seu povo, como  a sua música e a como a sua alma, a farofa é feita na mistura, na transformação do pathos em ethos. Nas fendas e na criatividade. É resistência e arte.

Mas a importância da farofa é o que ela ensina o mais essencial para a vida do ser humano: a simplicidade. E fora da simplicidade, como disse Weill, não há paz. Ou como quis o poeta Gabriel Nascente para o qual nada é perfeito. O que se aproxima da perfeição é o que é simples. A farofa é simples, por isso profunda.

No meu caso considero a farofa um luxo: pelo seu sabor vou às origens étnicas do povo brasileiro; pela sua simplicidade enfrento o consumismo e o mercado; pela mistura em que é feita aprendo que não preciso ser idolatrado, nem ser fechado em mim mesmo. Pela alegria de degustá-la com amigos supero  a força competitiva do dinheiro.

Em síntese: comendo farofa e desejando comê-la não vou falir nem ficar depressivo. Comer farofa é um modo que possuo de enfrentar o império e a sua superficialidade. De reforçar a mente e de ajustá-la às minhas condições originais e primazes.

Desta feita, farofa é ciência, política e educação: cruzo o canto de Elis com Macunaíma de Andrade; junto Chica da Silva com Buarque; boto Garrincha como tempero ao lado de Machado. Pixinguinha e Cora. É muito saboroso. E como aprendiz da farofa devo dizer: só acredito na arte, na arte com suor.

Eguimar Chaveiro - Professor de Geografia da Universidade Estadual de Goiás e  membro da ATLECA - Academia Trindadense de Letras, Ciências e Artes

Nicholas Cage, louco
pra comer farofa
* * *
P.S. - Esse primeiro post de Eguimar Chaveiro merece alguns complementos. Primeiro, eu me sinto obrigado, por questões de princípios, a indicar uma boa receita de farofa vegetariana, especialmente dedicada ao meu amigo Eberaldo. Segundo, como o próprio Eguimar sugere, a farofa está muito incorporada à música brasileira para que não constem, aqui, pelo menos alguns desses "pratos":

"Inteligência é fundamental"
"Moro no Brasil", com Farofa Carioca

"Farofa-fa", com Mauro Celso

"Farofa-fa", com Humberto Effe


"O mestre-sala dos mares", com Elis Regina



terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Jarrah Thompson, jah de volta!



Outra big band que tem a participação fundamental de um brasileiro - nesse caso, o baixão de Bruno Padoveze - é a Jarrah Thompson, da qual já falei num post do ano passado. É verdade que não sou muito rodado em shows de rock, mas o que eu vi em Rio Preto foi um dos melhores de minha vida - provavelmente o melhor em termos de qualidade musical. Pena que pouca gente se atrevia a dançar na lendária Vila Dionísio, alguns por deslumbramento e outros por desinteresse - desatenção é palavra certa.

O fato é que a família Thompson está de volta, em nova turnê pelo Brasil. Até agora são nada menos que 22 apresentações confirmadas, não do Oiapoque ao Chuí, infelizmente, nem do litoral ao Pantanal, mas da praia às Gerais:

14.02 – PRAIA DO ROSA, SC | Pico da Tribo
16.02 – BRUSQUE, SC | Teatro do CESCB
17.02 – FLORIANÓPOLIS, SC | John Bull Pub
18.02 – FESTIVAL PSICODÁLIA (SC)
19.02 – JOINVILLE, SC | Plug Rock Bar
21.02 – CURITIBA, PR | Hermes Bar (junto com Banda AcousticA)
23.02 – CASCAVEL, PR | Hooligans Pub
24.02 – MARINGÁ, PR | Mpb Bar
25.02 – LONDRINA, PR | Vitrola Bar
01.03 – S.J. do RIO PRETO, SP | Vila Dionísio
02.03 – LIMEIRA, SP | Bar da Montanha
03.03 – CAMPINAS, SP | Delta Blues Bar
04.03 – RIBEIRÃO PRETO, SP | Vila Dionísio
07.03 – RIO DE JANEIRO, RJ | Rio Rock & Blues Club
08.03 – JUIZ DE FORA, MG | Cultural Bar
09.03 – BELO HORIZONTE, MG | Stonehenge Rock Bar
10.03 – VARGINHA, MG | local à confirmar
11.03 – RIO CLARO, SP | Café Apartaco – Aquarius
14.03 – SÃO CARLOS, SP | Caaso/USP
15.03 – BAURU, SP | Armazén Bar
16.03 – POÇOS DE CALDAS, MG | New York Pub
17.03 – BRAGANÇA PAULISTA, SP | Galpão Busca Vida

Em tempo: os Thompsons disponibilizaram seus três discos para download gratuito. Os dois primeiros são muito influenciados pelo metal mas já têm as guitarras e as flautas personalíssimas, respectivamente, de Mr. Thompson e Asha Henfry. O terceiro - Rio Claro, gravado no Brasil - é a meu ver o melhor:

sábado, 4 de fevereiro de 2012

The Strokes e o futuro do rock: ângulos da "questão"

Angles, o quarto álbum dos Strokes, já saiu há quase um ano, mas a minha demora em comentar esse "lançamento" de março de 2011 se explica: primeiro, demorei a saber dele, o que só aconteceu graças ao blog do Leandro Blamires, irmão de meu amigo Danbla; segundo, minhas primeiras audições dele não me permitiram formar um juízo equilibrado. Na verdade, aconteceu como numa velha tirinha do Garfield em que ele come uma gelatina com salsichas: a boca gostou mas o estômago ficou pensando.

Ou melhor: a primeira impressão foi de deslumbramento, a segunda de desconfiança e a terceira de confusão. Então achei melhor dar um tempo e só voltar a ouvir o disco algum tempo depois, o que só fiz há algumas semanas.

O que acontece com Angles e, principlamente, o que aconteceu comigo? Acho que mais ou menos o que aconteceu com boa parte dos ouvintes, por exemplo os que escreveram esses posts no Omelete e no Whiplash!: excesso de conceitualismo e, principalmente, superexpectativa menos musical que "de gênero".

O fato de os Strokes terem sido uma das poucas bandas pop (ou "indie") com sonoridade garagem e, ao mesmo tempo, força criativa a alcançar status mainstream nos últimos anos a fez depositária de uma expectativa que vira e mexe reaparece, como uma frieira intermitente: a de que seriam eles que iriam "salvar o rock". Aí começam as inquirições mais disparatadas. Isso soa como anos 80 ou 70? Isso é indie ou é pop? Arranjo eletrônico pode? E bossa nova, pode? Enfim, isso ainda é capaz de "salvar o rock"?

Todas essas questões são passíveis de questionamento (sic), a começar pela mais genérica delas: quem disse que o rock precisa ser salvo? Há períodos em que o rock ganha mais espaço na mídia, em outros perde. A "preocupação", no Brasil, é com o funk e o sertanejo, mas pouca gente nota que as versões contemporâneas desses gêneros devem muito ao rock: vide os solos de guitarras no "sertanejo universitário" e as letras acintosas, às vezes para além do sexismo, no "funk carioca". E como distinguir exatamente os anos 80 dos 70 ou o indie do pop? Esses períodos e esses conceitos são coisas complexas, e que se imbricam.

É verdade que Angles já não transpira a paixão juvenil (e, às vezes, a afetação pós-adolescente) de Is this it (2001) e Room on fire (2003). Mas seria mesmo estranho ouvir Julian Casablancas, aos 33 anos, iniciar um disco berrando a plenos pulmões: "I wanna be forgotten, and I don't wanna be reminded!!!" ("What Ever Happened?").

E, no entanto, minha impressão final é que Angles equaciona de forma mais consequente os problemas que surgiram com a busca de diversificação sonora do terceiro disco, First impressions of Earth, do já distante 2006. Este, à parte canções excepcionais, como "You only live once", me soa como uma grande barafúndia (na verdade, preciso confessar que nunca consegui ouvi-lo direito). Mesmo o hit citado, uma evidente tentativa de soar como Beatles - a canção é mesmo belíssima, o arranjo excelente, a voz de Casablancas perfeita em suas inflexões paulmccarteynianas - demonstra como os Strokes estavam insatisfeitos com a pele de Strokes.

Em Angles os Strokes voltam a soar como The Strokes: menos rápidos e viscerais, é verdade, mas ainda básicos e melodiosos. Ainda simples mas um pouco mais sofisticados. Ainda "rockers" mas também reaggers e newbossers (sic). Quanto ao flerte com a música eletrônica, para mim nada mais natural: a característica mais marcante das baquetas do brasileiro Fabrizio Moretti é justamente uma batida veloz e tão seca e precisa que soa, por vezes - principalmente em Room on fire -, como uma bateria eletrônica, embora altamente suingada.

Mas todo esse conceitualismo de araque obscurece o principal: é um disco belíssimo, com canções belíssimas. Nem todas colam como chiclete, como parece que gostaria Ricardo Seelig (que, no entanto, acaba reconhecendo que quase todas são boas...) na matéria do Whiplahs!, mas todas têm qualidade melódica, rítimica e harmônica para figurar em um bom disco dos Strokes. Para não citar os vários "acertos" reconhecidos por Seelig, confira o leitor a pop bossa "Call me back", que, segundo ele, "é uma composição totalmente esquecível, que vai do nada para lugar nenhum", e a operística "Metabolism" (que teria "boas guitarras, e só isso"), na qual Moretti participa como compositor e, claro, arrebenta na batera.

No fim das contas, portanto, meu muito obrigado ao Leandro pela dica que me proporcionou toda essa confusão e experiência sonora!

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O amor nos tempos do porrete


Desculpem-me os colegas mais exigentes, mas, apesar da referência a García Márquez, eu começo de novo citando Renato Russo, que disse (num show em Campo Grande que eu não tive a sorte de ver) que transava até com porco-espinho. Eu, cuja experiência mais próxima da zoofilia foi uma paixão platônica pela Maga Patológika, não tenho opinião formada sobre o assunto. Mas desde que vi Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo etc., de Woody Allen (especificamente, o episódio estrelado por Gene Wilder, numa dobradinha fantástica), e que soube de muita gente boa (inclusive um ex-policial) que teve sua iniciação sexual com vacas ou ovelhas, deixei de me escandalizar com essas coisas.

Aliás, nem é bem disso que se trata na foto acima, um registro que ocasionou, segundo notícia amplamente divulgada, o afastamento dos "envolvidos". E diante desse fato eu me pergunto: é esse tipo de excesso que causa afastamento de policiais (no caso, em Santa Catarina)?

Não que haja aí, propriamente, esse atributo moral cada dia mais raro chamado inocência. Os rostos que podemos ver não exprimem maldade ou sarcasmo, e sim uma malícia comum em brincadeiras masculinas. Mas, sem sacanagem, o buraco é mais embaixo: alguém duvida que essas pessoas só se atrevem a fazer isso porque são quem são, ou seja, porque vestem a farda que vestem? Ou, inversamente, alguém acredita que outras pessoas (em "sã consciência") se atreveriam a fazer o mesmo diante dessas pessoas fardadas?

Quando vi essa notícia me lembrei de uma experiência - na verdade, lembrei-me dela outras vezes esses dias - que tive o desprazer de viver em São Paulo. Eu, a Josy, grávida, e o Chico, então um bebê, saíamos da rodoviária da Barra Funda pela Francisco Matarazzo, e na calçada uns rapazes tomavam baculejo, enquanto o policial (um oficial?) que comandava a operação apressava "educadamente" os passantes. Como a Josy, de barriga já bem avantajada, começou praticamente a correr, eu disse que não precisava ser tão depressa assim. Não lembro o conteúdo verbal exato da reação do representante da lei, mas só o gesto que ele fez, com o cassetete ou coisa mais ameaçadora, já foi suficiente para que eu mesmo puxasse a Josy, assustado.

Coisas da vida. Enfim, nada demais, a meu ver, em simular um "ato de amor" com uma vaquinha de inspiração folclórica. Nosso folclore, aliás, tem lá sua malícia, e hoje em dia até os desenhos animados brincam com coisas desse tipo. Mas quando esse ato advém de um policial cercado por seus colegas, e que provavelmente impediria que outras pessoas o praticassem, é difícil não ver aí uma prova da psicologia do autoritaritarismo que ainda grassa entre nós.

O que não elimina a pergunta, que convém refinar: e os atos de truculência contra seres humanos (de verdade) cometidos por policiais, sob ordens superiores ou não, quando gerarão automaticamente processos disciplinares? Aliás, até quando vamos  conviver com esse "resquício" autoritário que é uma "sociedade livre" onstensivamente vigiada por polícias militares?

E se o caso é de atentado contra bovinos, uma notícia como essa me parece muito mais atroz, aliás como o cotidiano de qualquer matadouro.


P.S. em 05/02 -
O que acontece agora em Salvador-BA é "apenas" uma consequência extrema (mas não necessariamente a mais extrema) de uma "ordem social" fundada muito na vigilância e no armamentismo ostensivos, e não na justiça social.